quarta-feira, 6 de julho de 2022

Um presidente leitor

 Por Jéferson Tenório

Dias atrás, estava participando da Bienal do Livro de São Paulo. Fui convidado para participar de uma mesa em homenagem ao escritor português José Saramago*. Junto comigo estavam os escritores José Luís Peixoto e Andréa Del Fuego. Na ocasião, falamos, entre outras coisas, de como chegamos na literatura de Saramago. No meu caso, o primeiro contato que tive se deu através de um conto chamado Centauro, que faz parte do  Objecto Quase, publicado em 1978. 

No conto, que mistura o real e o mítico, vemos a narração de um homem e um cavalo, e que em determinado momento param para descansar após uma longa cavalgada. Em seguida, o homem começa a sonhar, e surge a figura do centauro, este ser híbrido e mitológico metade humano e metade animal. A partir daí, Saramago vai nos oferecendo reflexões sobre a vida, sobre a existência e, mais do que isso, reflete sobre como lidamos com essa parte animal, mais instintiva e irracional, que nos habita. 

Já ao final da mesa e de nossa discussão, fomos todos surpreendidos com a chegada do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza. O presidente subiu no palco sob as lentes de centenas de fotógrafos, apertou nossas mãos, pediu a palavra e começou a falar com propriedade e beleza sobre Saramago. Confesso que, enquanto ele falava, senti uma espécie de tristeza porque não pude evitar a comparação com Bolsonaro. Não pude deixar de pensar como foi que chegamos no fundo desse poço. 

Não conseguia parar de pensar como foi que milhões de pessoas puderam acreditar num presidente que se vangloria por não ler livros. Como foi que chegamos nesse lugar de celebração da ignorância? Como foi que elegemos um presidente que declara guerra ao conhecimento? Como foi que chegamos ao ponto de eleger um presidente que celebra escolas de tiros e vendas de armas ao invés de abrir bibliotecas? É claro que um presidente intelectualizado, leitor, não garante que teremos um bom governante, mas certamente um presidente que se coloca contra a ciência, contra o conhecimento e se torna inimigo do livro tem todos os requisitos para ter uma administração desastrosa e genocida como a que tivemos até agora. 

Depois de sua fala, Marcelo Rebelo foi aplaudido, desceu do palco e continuou a circular entre os stands acompanhado de seguranças e do público em geral. E, enquanto ele sumia na multidão, fiquei pensando que de fato merecemos um futuro melhor. Um futuro sem armas, sem discursos de ódio, sem violência e com mais amor aos livros. Por mais presidentes leitores no Brasil e no mundo. 

(Do jornal Zero Hora, 6 de julho de 2022)

*José de Sousa Saramago (Azinhaga, Golegã, 16 de novembro de 1922 − Tías, Lanzarote, 18 de junho de 2010) foi um escritor português galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

A diferença entre um presidente que lê e o que não lê... 

P.S. Jair Bolsonaro, pré-candidato à reeleição pelo PL, decidiu impor uma retaliação ao presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, durante uma visita que ele fez ao Brasil. O chefe de Estado português tinha uma audiência prevista com Bolsonaro, mas o presidente brasileiro mandou avisar aos emissários portugueses que audiência estaria cancelada se Rebelo de Sousa se encontrasse com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato à Presidência pelo PT.  

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