quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Moleque de rua

 

Imagem da internet

Dei duro. Enfrentei. 

Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais malando, ganhar. Como todo infeliz começa. 

Já cedinho batucava. 

– Vai um brilho, moço? 

Repicar na caixa, mandar os olhos nos pés que passavam. Chamar freguês. E depois me mandar no brilho dos sapatos. Fazer um barulhão com o pano, atiçar os braços finos, esperto ali. 

Os dedos imundos não tinham sossego. Às vezes, cobiçava os pisantes dos fregueses; então, apurava mais o brilho. O tipo se levantava da cadeira, se arrumava todo; se empinava, me escorregava uma nota. Humilde, meio encolhido, eu recolhia a gorja magra. Tudo pixulé, só caraminguás, uma nota de dois ou cinco cruzeiros. Mas eu levantava os olhos e agradecia. 

Aguentava frio nas pernas, andava de tênis furado, olhava muito doce que não comia e os safanões que levei no meio das ventas, quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era ver e desejar. Parasse aí. Aguentei muito xingo, fui escorraçado, batido e dormi de pelo no chão. Levei nome de vagabundo desde cedo. Lá na rua do Triunfo, na Pensão do Triunfo, seu Hilário e dona Catarina. 

Aquilo, àquele tempo, já era o casarão descorado dos dias de hoje, já pensão de mulheres. Mas abrigava também, à noite, magros, encardidos, esmoleiros, engraxates, sebosos, aleijados, viradores, cambistas, camelôs, gente de crime miúdo, mas corrida da polícia: safados da barra pesada que, mal e mal amanhecia, seu Hilário mandava andar. Cada um para a sua viração. 

A gente caía para a sua. Catava que catava um jeito de se arrumar. Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camelôs, passar retrato de santo, gilete, calçadeira... Qualquer bagulho é esperança de grana, quando o sofredor tem a fome. Vontade, jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia cachorro enfiando a fuça atrás de comida. 

(...) 

******* 

Parte do conto “Paulinho Perna torta”, de João Antônio. 

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