quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Zélia, a bem amada.

 Iza Salles

Um dos trechos mais deliciosos das memórias de Zélia Gattai relata o que aconteceu no dia em Jorge Amado confessou que a amava. Os dois haviam se conhecido nas lutas comunistas do pós-guerra, nos anos 40, lutas pela paz, pela libertação de Prestes*, a todo momento se cruzavam, em casas de amigos, nos comitês de campanha, e há tempos ela vinha percebendo seu interesse, os olhares, mas não havia jeito de o homem confessar-se. 

Até que um dia ‒ estavam no bar do Hotel Esplanada, em São Paulo, onde esperavam o poeta Pablo Neruda e sua mulher, numa tarde de julho de 1945 ‒ ele tomou coragem. Abriu o coração e ela sentiu uma tontura. Até hoje não sabe se efeito de suas palavras ou do vinho do Porto que bebiam. Mas sabe que o vinho português ajudou na resposta que lhe deu. Sem constrangimento ou censura, respondeu que seu amor por ele também era enorme, fora de todas as medidas, que o acompanharia onde ele quisesse ‒ céu, ínfero ou fim do mundo ‒ enquanto sentisse que ele a amava. 

(...) 

Na noite do dia em que se confessou à amada, quando voltavam de uma exposição, na companhia de Neruda e Matilde, Zélia viu-se coberta de cravos vermelhos que ele, pedindo ao motorista para parar um momento, comprou de uma florista em frente ao Teatro Municipal. Cena romântica que impressionaria o poeta chileno por toda a vida. Até sua morte, nos anos 70, Neruda recordaria “la lluvia de claveles rojos en la madrugada” que o amigo Jorge jogara em Zélia, no primeiro dia de seu amor. Assim, com uma chuva de cravos vermelhos que surpreendia até os poetas, começou um dos amores mais duradouros deste século*, 54 anos* de vida em comum, uma afeição sólida e profunda, raridade em tempos de amores passageiros. 

(...) 

No livro em que recorda a noite dos cravos vermelhos, ela lembrou também as palavras que, horas antes, Jorge Amado lhe dissera. Nada especial: ele lhe disse que ela era diferente de todas as que conhecera, que era a mulher com quem gostaria de viver toda a vida ‒ coisas que os homens dizem, há séculos, às mulheres. Mas, no seu caso, era verdade. 

* Século XX e ano de 1999. 

(Matéria da revista BUNDAS, de setembro de 1999)

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