domingo, 28 de janeiro de 2024

Panteão dos Clássicos

Linguajar para profissionais

 Rui Barbosa

(...) 

Dos que nascem argentários se fazem ordinariamente os pródigos inúteis e malfazejos. A cultura pertinaz e obstinada é que desentranha da gleba revessa as vegetações luxuriantes, as florescências maravilhosas, as frutificações opulentas, searas, pomares, rebanhos, metrópoles, nações, estados, prole imensa desse casamento perene, abençoado por Deus, entre a terra e o trabalho. Trabalhai, pois, mas persistentes, incessantes, como o sol de todos os dias e o orvalho de todas as noites. Ouvireis discorrer de grandes e pequenas nacionalidades, de impérios poderosos e repúblicas desprezíveis. Tudo aí é atividade, ou indolência; tudo vai do trabalhar, ou não trabalhar. Não há senão povos, que trabalham, e povos, que não trabalham. Se nós trabalhássemos, não veríamos, no Brasil, com os seus dezesseis ou dezoito milhões de habitantes, um território capaz de alimentar a população da China e uma natureza bastante a fartar metade da Europa essa importação factícia e indizivelmente lamentável das questões da miséria, que açoitam, no velho continente, os países exaustos ou sobrepovoados. 

Mas o trabalho é rude, às vezes desabrido, ferrenho, desconversável: não lisonjeia os seus neófitos, não ameniza as suas durezas, não condescende com as nossas debilidades. Mas é preciso encará-lo serenamente. Não conheceis esses corações meigos, fracos, danosos, que um córtex de árvore enrugada e sombria oculta aos olhos vulgares? Insisti, familiarizai-vos; e acabareis vendo, afinal, como o sobrecenho se desfranze, a aridez se orvalha, o amargor se adoça, e de onde se ouriçava de obstáculos e antipatias a crespidão impenetrável, começam a soabrir inesperados favos, a abrolhar surpresas, a destilar mimos, a se tramar sutilmente de liames e carícias inefáveis a rede, que nos enlaça para sempre nas suas malhas. Fez-se carne da nossa carne: entrou da epiderme ao músculo, do músculo ao nervo, do nervo à medula, ao coração, ao tecido pulmonar, ao oxigênio do sangue, à célula cerebral, ramificando os fios imperceptíveis de vaso em vaso, entretecendo-os de fibra a fibra, atravessando-os de glóbulo em glóbulo, até se implantar em nós inseparavelmente, como a mais orgânica das nossas necessidades e o mais generalizado elemento da nossa vida. Eis o trabalho como o eu amo, como o eu sinto, como é mister, para regenerar o homem, para transformar os povos, para criar os moços. 

Somente a aquisição desta segunda natureza não se obtém sem o seu tirocínio especial um pouco árduo nos primeiros começos, mas logo depois cheio de salutares compensações. Evitai o perfunctório, o superficial, o atamancado. Ousai sempre o que meditadamente resolverdes. Ultimai sempre o que tentardes. Proponde-vos a tarefa, estreita, moderada, circunscrita, segundo o vosso alento; mas esgotai-a, limai-a, poli-a. Não vos fique dúvida, que não esquadrinheis; imperfeições, que não corrijais. Tende por igualdade dignos de consideração assim os máximos, como os mínimos defeitos; e não vos escape aresta, interstício, aspereza, macha, inarmonia. Não dissimuleis, em suma, com a vossa obra. Quando vos sair das mãos, seja, até onde puderdes, acabada. E, se destarte vos exercitardes algum tempo, tereis adquirido o grande hábito, o hábito salvador, o hábito do trabalho sério, educativo, fertilizante. Praticai-o assim que não vos arrependeres: será o criador da vossa fortuna, o ornamento do vosso nome, o consolo de vossa velhice. Mas, não começando nos anos juvenis, tarde será nos outros. Vegetareis então como o sapé das terras cansadas, entonado, exuberante, mas ocioso, bravio, daninho, símbolo da esterelidade e ostentada ao sol. 

*********

Coletânea Forense para Os Estudantes de Direito (*) 

(*) Fonte (Textos extraídos do livro): Sylvino Gonçalves. Rui Barbosa: coletânea forense para os estudantes de direito. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1959. 

Rui Barbosa foi a maior figura literária da sua geração. Ninguém o sobrepujou em cultura, profundidade de conceito, eloquência e pureza da linguagem. 

Advogado, jurisconsulto, jornalista, político, estadista, ensaísta e vernaculista, cuja obra cívica foi comparada à facúndia de Cícero com a vernácula expressão do padre Vieira. 

P.S. Rui Barbosa, o erudito, despetalava a flor do Lácio caprichosamente, glosa-se, até hoje, em todos os principais cursos de Direito do Brasil. E os casos se tornaram extravagantes, quando, por motivos alheios à própria vontade, o luminar descia da torre de marfim para contatos fortuitos com a plebe rudimentar.



Nenhum comentário:

Postar um comentário