terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Te pego na saída

 Carpinejar

 

Na escola, não provocava nenhum amigo. Longe de mim brigar. Queria distância de discussão, engolia a seco desaforos, evitava encarar qualquer um durante muito tempo. 

Magrinho e franzino, com inferioridade física, mantinha-me fiel ao meu roteiro de discrição: residência, sala de aula, residência. 

Isso jamais seria suficiente. Eu estudava no meio de um faroeste. 

Um esbarrão involuntário no corredor, ou não dar cola, ou humilhar alguém com chapeuzinho no futebol, ou brincar com uma menina desejada pelos vilões já servia para fazer desafetos entre os mais velhos. 

Conviviam na mesma turma alunos com diferença de três anos. Os repetentes se mostravam muito mais fortes do que a minha faixa etária. 

Partia deles a ameaça que deixava todo mundo em pânico, com cabelo em pé: “Te pego na saída”. 

Não tinha como escapar da sentença. Uma tensão elétrica corria de mesa a mesa, uma euforia de coliseu, um sadismo coletivo. Todo mundo ficava sabendo, e ninguém deixava fugir. Paredões humanos impediam a covardia, até porque existia um único acesso de saída da escola. 

“Pegar na saída” representava brigar no fim da aula, fora dos muros da instituição, sem diretora para apartar, sem professor para socorrer, sem pais para garantir algum arrego. 

Não havia como conversar, adiar, buscar atenuantes ou mesmo se desculpar com antecedência. Uma vez dito, nada mudava o fatalismo do encontro, o terrorismo psicológico. 

A escola inteira ligava o cronômetro e passava telefone sem fio, avisando que ninguém deveria ir para casa: teria surra antes do almoço. 

Você virava um alvo. 

Quando fui ameaçado por um colega do fundo da sala, pela goleada astronômica do meu time em cima do dele durante o recreio, suei frio, sofri horrores. Ao longo daquela manhã, não conseguia prestar atenção no conteúdo, minutos demoravam horas, eu me sentia observado por olhares de piedade e compaixão. Eu me via um menino morto, desprovido de chance de um golpe redentor ou um chute messiânico. 

Respirava fundo. Recebia bilhetes de quem torcia por mim, e recados das alas favoráveis ao agressor, antecipando que sangraria feio para aprender a lição. 

Esperava, instante a instante, que acontecesse algo sobrenatural. Rezava ao crucifixo em cima da lousa para o duelo ser cancelado. 

Se eu acredito em milagres, se eu acredito em Deus, a fé decorre dessa época. 

Perto de encerar o último período, a mãe de um aluno estranhamente bateu à porta e pediu licença para a professora. Tratava-se da mãe de quem jurava me espancar. Foi buscá-lo mais cedo para exame médico. 

A decepção tomou conta do ambiente, anulando o bookmaker do possível vencedor da pancadaria, suspendendo as apostas já feita com bolitas e figurinhas. 

Só eu vibrei, só eu festejei, só eu comemorei. Acabei esquecido. O ultimato durava apenas 24 horas. No dia seguinte, eram eleitos novos inimigos. 

(Do jornal Zero Hora, 30 de janeiro de 2024) 

P.S. Esta crônica do escritor Fabrício Carpinejar também está no livro de sua autoria: “Te pego na saída”, da Editora Edelbra.

 Observação: 

Em todas as escolas do meu tempo de estudante sempre havia um valentão que confiava muito no seu tamanho para ameaçar os baixinhos da sua turma e os de outras turmas. A escola inteira ficava sabendo que alguém iria bater, ou pensar que ia bater num fracote. Então, vi um caso singular. O desafiante, confiando na sua pseudovalentia, desafiou um aluno na saída da escola. Formou-se aquele corredor de duas fileiras de estudantes, com o aluno desafiado não tendo outra saída senão encarar a briga. O baixinho deixou que a iniciativa da briga partisse do valente, que deu o primeiro soco. O menino agredido se enfureceu e partiu com muita raiva para cima do valentão, que, atônito com a garra do garoto, não teve outra reação senão dar as costas e ir embora, humilhado. 

Um conselho que eu dou aos garotos que sofrem ameaças dos valentes de escolas. Se não houver outra saída, encarem a briga, não fujam da raia. Eles contam com a sua fragilidade e o seu medo para fugir do confronto. Usam as palavras para ameaçar e contam com a sua falta de reação para a briga. Eles sempre ganham no grito, mas se vocês reagirem, até mesmo com palavras fortes e decididas, olhar enfurecido, punhos cerrados, mostrando os dentes com fúria, eles baixam a guarda e, muitas vezes, não vão para o embate. São uns enganadores!

Agora... se você for um garoto moderno, pacífico, antenado nos jogos eletrônicos de videogames, poderá desafiar o valentão para um jogo online, onde você poderá usar todas as suas habilidades aprendidas na solidão do seu quarto e tudo ficará na santa paz...

NSM

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