Velho conto de Mary Cholmondeley
Reconstituído por Anthony Abbot
(1883-1952)
A mulher, de pé junto à janela,
aplicou o ouvido. Estava sozinha na cabana, e olhava distraidamente para a
planície deserta, por sobre a qual caiam as primeiras neves daquele inverno.
Mas foi somente ouvir o ruído
inesperado, que se sentiu realmente amedrontada. O marido a tinha deixado assim
sozinha, mais de uma vez, durante dias a fio. Agora, porém, quando tinha ela a
certeza de que estava para ter criança, o caso era diferente. Porque o não
informara de tudo, antes que ele partisse?
É que o vira tão preocupado... Se
soubesse que ela estava grávida, não teria ido. E já tinha tanto em que
pensar... Lembrou-se então dele, em pé, ao lado da janela, com as mãos apoiadas
sobre seus ombros, e a falar-lhe da questão que o preocupava. Era coletor de
taxas daquele condado, junto à fronteira. Trouxera para casa uma sacola cheia
de dinheiro, e o escondera numa lata de biscoito, sob uma tábua da cozinha.
“Mas por
quê?”
É que as coisas iam mal. Suas
próprias pequenas economias, num lugarejo distante, se achavam seriamente
ameaçadas pela falência de um banco. Ele precisava ir até lá, a ver se ainda a
salvava. Não ousava, porém, viajar, carregando consigo o dinheiro do condado,
motivo pelo qual resolvera ocultá-lo ali. Uma vez salvo o seu pecúlio, iria até
a cidade onde estava o banco do estado, e lá depositaria o dinheiro do povo.
“Prometa
que, durante a minha ausência, você não sairá daqui, nem deixará ninguém
entrar, sob pretexto algum”.
“Prometo”,
respondeu a mulher.
Ele já tinha partido, havia várias
horas; a noite vinha caindo, e a neve e a escuridão cercavam aos poucos a
solitária cabana. Foi quando houve um ruído. Não era o vento; ela conhecia bem
o som do vento, que às vezes se assemelhava ao de uma furtiva mão, tentando
abrir as portas e as janelas. Não. O que ouvira desta vez, fora uma série de
golpes apressados na porta da entrada. Encostando um lado do rosto de encontro
à vidraça, no canto da janela, pôde ver o vulto de um homem que se apoiava à
porta.
Recuou apressadamente, e, indo ter à
lareira, apanhou a pistola do marido. Ele levara a outra, e, por cúmulo de
pouca sorte, a que estava armada. A que ficara, de nada lhe valeria. Tomou nas
mãos, contudo, e rumou para a porta trancada.
- Quem
está aí? Perguntou.
- Um soldado ferido. Me
perdi no caminho, e nem posso mais andar. Por favor, abra a porta.
- Prometi a meu marido que
não deixaria ninguém entrar durante a ausência dele, respondeu ingenuamente.
- Pois
então eu morro em frente à sua porta, replicou o desconhecido.
Mas, depois
de uma pausa, insistiu:
- Abra
a porta, olhe bem pra mim, e verá que não lhe posso fazer mal algum.
- Meu marido nunca me há-de
perdoar, disse ela finalmente, abrindo a porta, em soluços.
Tratava-se de um rapaz que mal se
podia suster em pé, de tão exausto. Alto, com o passo vacilante, tinha a cabeça
coberta de neve, o rosto pálido e sombrio, e um dos braços enrolado em
ataduras.
Ela fê-lo sentar-se na cadeira do
marido, junto à lareira, mudou-lhe as ataduras, e serviu-lhe o jantar que havia
preparado para si própria. Depois, arranjou-lhe uma cama com dois tapetes e um
cobertor, no quarto do fundo. Ele deitou-se, e parecia ter logo adormecido.
Estaria, porém, realmente dormindo?
Teria ela caído numa cilada? Talvez o suposto ferido só estivesse esperando que
ela pegasse no sono.
Inquieta, pôs-se a andar de um lado
para outro, esperando o pior. O silêncio era completo; ouvia-se apenas, de
quando em vez, o crepitar da lenha na chaminé. Senão quando um ruído surdo,
cuidadosamente abafado, feriu-lhe os ouvidos. Dir-se-ia um rato a roer. De onde
viria? Com certeza era o homem do quarto.
Pegando na lanterna, avançou, pé ante
pé, pelo corredor, procurando apurar a audição. Pareceu-lhe que o seu hóspede
estava respirando forte demais – devia estar fingindo. Abriu-lhe a porta do
quarto, entrou devagarinho, e curvou-se sobre o rapaz. Não; estava de fato
dormindo.
Saiu do quarto, e ouviu novamente o
mesmo ruído. Já agora não teve dúvida: alguém tentava forçar o trinco da porta,
Abriu a caixa onde o marido guardava as ferramentas, tirou dela uma
navalha, e voltou nas pontas dos pés, para o quarto do soldado. Sacudiu-lhe o
ombro, e ele abriu os olhos, soltando um gemido:
-
Ouça, murmurou, - alguém está tentando entrar na casa. Me ajude.
- Que
é que um ladrão quer aqui? Perguntou o ferido, atônito. – Não há nada pra
roubar!
- Há, sim, respondeu-lhe
ela. – Há uma sacola de dinheiro escondida no chão da cozinha. Arrependeu-se
imediatamente de tê-lo dito, mas já era tarde.
- Apanhe meu revólver,
disse então o soldado. – Só sei atirar com a mão direita, a doente. Me passe a
navalha.
Ela hesitou um segundo, mas, como
ouvisse novamente o ruído no trinco, fez depressa a troca.
- Encarregue-se do primeiro que entrar, recomendou o
hóspede. Fique perto da porta, e no momento em que esta se abrir, atire. Aqui
estão seis balas. Continue atirando até que ele caia, e fique no chão. Eu fico
logo atrás, com a navalha, para tomar conta do segundo. Logo que nós chegarmos
à porta, apague a lanterna.
A escuridão era completa. O
misterioso ruído cessou por fim, e ouviu-se, ao invés, o som dos gonzos,
deslizando devagar. O ferrolho já cedera. Súbito, a porta abriu-se, e um homem
entrou. Ela viu num relance a silhueta recortada sobre a alvura da neve, e
abriu fogo. Ele caiu, mas levantou-se, de novo, e ela atirou outra vez. O
homem, ainda no chão, tentou erguer-se sobre os joelhos, mas foi atingido em
cheio por um novo tiro. Deixou-se então escorregar, devagarinho, com o rosto de
encontro ao muro, e ali ficou, imóvel.
O soldado
exclamou, surpreso:
-
Então, era só um!
E
acrescentou:
- Olhe
que a senhora tem uma boa pontaria!
Puxou o corpo da vítima, de maneira a
deitá-lo de costas. Viram então que o homem trazia uma máscara. A mulher
aproximou-se, e tinha os olhos presos ao morto, quando o soldado, tirando a
este a máscara, perguntou:
- Sabe
quem é?
Ela sacudiu
a cabeça.
- Para
mim, é um estranho, respondeu.
E, sem um tremor sequer, contemplava
imóvel o rosto do homem que viera roubar a si mesmo – seu marido.
*****
(In Seleções do
Reader´s Digest – janeiro de 1945)
Anthony Abbot
(1883-1952)
Nasceu Charles Fulton Oursler em
Baltimore, Maryland EUA. É jornalista, repórter, editor e escritor. Usa o
pseudônimo Anthony Abbot para a escrita de temas policiais. Com o seu primeiro
livro About the Murder of Geraldine Foster (1930) cria o Inspetor Thatcher
Colt, o mais trabalhador e tenaz caçador de criminosos; Thatcher é um
felizardo, solteiro que habita uma casa de cinco pisos em Manhatan West , com
ginásio próprio e uma biblioteca de 5000 volumes sobre criminologia. Os
primeiros livros de Anthony Abbot começam sempre pela palavra About, no entanto
nas edições seguintes o título é diferente, o que baralha os seus leitores.
Publica vários romances e contos - ver adenda. Abbot é um clássico entre os
clássicos.
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