Mergulhar a
palavra em água sanitária.
Depois de
dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas
palavras, quando alvejadas ao sol,
adquirem
consistência de certeza.
Por
exemplo, a palavra vida.
Existem
outras, e a palavra amor é uma delas,
que são
muito encardidas pelo uso,
o que se
recomenda esfregar
e bater
insistentemente na pedra,
depois
enxaguar em água corrente.
São poucas
as que resistem a esses cuidados,
mas existem
aquelas.
Dizem que
limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada.
Toda
tentativa de lavar piedade foi sempre em vão.
Agora nunca
vi palavra tão suja como perda.
Perda e
morte na medida que são alvejadas
soltam um
líquido corrosivo
que atende
pelo nome de amargura,
que é capaz
de esvaziar o vigor da língua.
O
aconselhamento nesse caso é mantê-lo sempre de molho
em um
amaciante de boa qualidade.
Agora, se o
que você quer é somente
aliviar as
palavras do uso diário,
pode usar
simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo,
neste caso, é misturar palavras que mancham
no contato
umas com as outras.
Culpa, por
exemplo, a culpa mancha tudo que encontra
e deve ser
sempre alvejada sozinha.
Outra
mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
sendo uma
palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que
não é evitável,
esgarçar a
força delicada da palavra amizade.
Já a
palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro
cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco
de perderem o sentido.
A
sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma
oleosidade que dá vigor aos sons.
Muito
importante na arte de lavar palavras
é saber
reconhecer uma palavra limpa.
Conviva com
a palavra durante alguns dias.
Deixe que
se misturem em seus gestos,
que passeie
pela expressão dos seus sentidos.
À noite,
permita que se deite,
não ao seu
lado mas sobre seu corpo.
Enquanto
você dorme, a palavra, plantada em sua carne,
prolifera
em toda sua possibilidade.
Se puder
suportar essa convivência
até não
mais perceber a presença dela,
então você
tem uma palavra limpa.
Uma palavra
limpa é uma palavra possível.
(Viviane Mosé – em “O
Globo”, de 05.07.2003)
Viviane Mosé é
professora de filosofia, psicanalista e poeta.
Apresentou no Fantástico
o quadro “Ser ou Não Ser”.
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