domingo, 26 de novembro de 2017

Um hierofante* em Porto Alegre



Os vaticínios do major João Eustáquio

Soube a nossa reportagem que, há dias, vindo do Rio de Janeiro, o major João Eustáquio, cujas profecias por muito tempo foram publicadas na imprensa carioca e algumas da quais tivemos ocasião de transcrever.

Um dos nossos companheiros começou logo a procurá-lo insistentemente, no que gastou muitos dias, até que, na quarta-feira última, pôde encontrá-lo.

O major hierophante está hospedado em uma casinhola situada na rua Sertório, nos Navegantes, quase à beira do rio.

É um homem que aparenta ter 60 anos de idade, gordo, alto, forte ainda, apesar dos anos; usa barbas longas e fuma cachimbo, um grande cachimbo simbólico, cujo canudo representa uma cobra, com duas ou três cabeças.

Quando nosso companheiro aproximou-se da figura popética estava ele sentado num tosco banco, feito de figueira do mato.

Sem que o repórter do Correio do Povo se anunciasse, hierofante, sem mudar de posição ou sequer responder a saudação que lhe fora dirigida, disser vagarosamente:

- Já o esperava por aqui, meu amigo.

E continuou, como estava, a chupar o seu grande cachimbo, soltando grossas nuvens de fumo, cujas espirais acompanhava com o olhar, atentamente, até elas desaparecerem por completo.

No mesmo tom de voz com que recebera nosso companheiro, foi dizendo:

- Você é jornalista e quer que eu lhe diga alguma coisa para o seu jornal.

- Se não houver nisso algum inconveniente...

- Ah, hoje não pode ser. Venha sexta-feira ao meio-dia, que encontrará tudo pronto sem ter nenhum trabalho.

O repórter do Correio agradeceu a gentileza e retirou-se sem lhe apertar a mão.

Sexta-feira, à hora marcada, malgrado a chuva que caía, o nosso companheiro foi ter com o hierofante major, que apertava, entre os dentes amarelados, o seu simbólico cachimbo.

Depois de poucas palavras, o repórter desta folha tomou assento junto a uma mesa preta, de três pés.

- Escreva, disse o major imperiosamente.

Imediatamente, o nosso companheiro tirou do bolso algumas tiras de papel róseo, o major Eustáquio lançou Mao de uma, e, guardando-a, começou os seus vaticínios:

- Deixará de existir uma folha vespertina. Surgirá outra, de grande formato e de pequena duração.

- Um golpe rude sofrerá o comércio, coma fuga, para o exterior, de três comerciantes. Grandes prejuízos na praça.

- No mesmo dia, diversos sentenciados evadir-se-ão, assim como alguns doidos do Hospício São Pedro. Esse fato colocará em pânico a população desta capital, por muitos dias.

- Haverá uma grande inundação no Guaíba, causando enormes prejuízos.

- Um sportsman* querido e vitorioso em vários campeonatos terá um fim tristíssimo, em plena arena.

- Será roubado, misteriosamente, um riquíssimo negociante.

- A atual crise política preocupará, seriamente, a população desta cidade, trazendo em constante sobressalto muita gente graúda.

- Este ano será por demais aziago para muitos operários devido ao incêndio de diversas fábricas.

- Os que mourejam na imprensa não serão muito felizes. Um entrará para o hospício, outro morrerá em duelo e um terceiro terá que mudar de terra.

- Em plena festa, nos últimos volteios de uma valsa, morrerá subitamente, um dos rapazes mais smarts* de Porto Alegre.

- Uma noiva, ao entrar na igreja, matará o noivo com três punhaladas.

- Os bondes elétricos farão diversas vítimas: dois padres, um forte capitalista, um militar de alta patente e um velho funcionário público.

- Desabará um andaime, matando algumas pessoas.

- Pavoroso incêndio destruirá três grandes trapiches e alguns armazéns.

- Conflito entre estudantes e povo, por questões políticas.

- Haverá greves, arruaças e os açougueiros cometerão desatinos.

- A magistratura verá desaparecer alguns de seus membros, sendo dois aposentados.

- Prejuízos incalculáveis com a destruição de um grande arquivo.

- Em agosto e setembro, os médicos terão muito que fazer, a fim de debilitarem uma forte epidemia.

- Um automóvel, em vertiginosa carreira, precipitar-se-á no Guaíba. Morrerá aí uma família inteira.

- Na doca haverá um verdadeiro combate entre lenhadores, carroceiros e policiais.

- Na porta de um cinema haverá um grosso sarilho. Escândalo sem nome.

- Famosa viela, em uma noite frigidíssima, terá o alargamento sonhado há tanto tempo.

- Desastres de estradas de ferro fará correr muitas lágrimas.

- Uma tragédia pugentíssima tornará malsinada, para sempre, uma das ilhas fronteiras.

Nessa altura, o nosso companheiro horrorizado com todas essas desgraças, prestes a cair sobre nós e já com medo que o hierofante dissesse que o mundo acabar-se-ia no dia 31 de dezembro deste ano, como remate a tantos males, foi tratando de retirar-se da residência do tremendo adivinho, benzendo-se com a canhota e mandando para bem longe a lembrança que tivera de ouvir do major João Eustáquio.

Entrevista** publicada no Correio do Povo de 4 de junho de 1913

* Hierofante é o termo usado para designar os sacerdotes da alta hierarquia dos mistérios da Grécia e do Egito. É o sacerdote supremo, que pode ser chamado também de Sumo Sacerdote. O exemplo mais popular de alguém que pode ser chamado de Grande Hierofante é o líder supremo da Igreja Católica Apostólica Romana, o Papa, também chamado de Sumo Pontífice.

* Sporstman: desportista.

* Smart: polido, esperto, enfeitado.

** É claro que esta “entrevista” trata-se de uma grande gozação de algum cronista da época. Os fatos enumerados acima como tragédias deviam ser comuns na época, início do século XX, na nossa cidade. Ou, ainda, de uma brincadeira com as “previsões” que Múcio Teixeira*** fazia seguidamente na imprensa.


*** Múcio Scevola Lopes Teixeira (Porto Alegre, 13 de setembro de 1857 - Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1926) foi um escritor, jornalista, diplomata e poeta brasileiro. Nos seus últimos anos, dedicando-se ao ocultismo, escreveu sob o pseudônimo Barão Ergonte. É patrono de uma das cadeiras da Academia Rio-Grandense de Letras e da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Foi um dos autores mais prolíficos de seu tempo, escrevendo mais de setenta obras, entre ensaios, romances, dramas e biografias.

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