sábado, 11 de novembro de 2017

O Corvo da política brasileira



Caricatura de Lan*

Carlos Lacerda, um “corvo” que ajudou a levar o presidente Getúlio Vargas a dar um tiro no próprio peito, assim foi caricaturizado pelo célebre desenhista Lan.

Carlos Lacerda, o “Corvo” dos inimigos, que carimbava “roubalheira” nos adversários. Demolidor audaz, escondia em ímpetos de calculada agressividade um temperamento egocêntrico e depressivo. Carregava nas costas o suicídio de Getúlio Vargas (cujos capangas tentaram matá-lo em 1954), assim como carregou a deposição de João Goulart e um pedaço da ditadura que se instalou em 1964.

Vale ouvi-lo:

Sobre Vargas: 

“Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.

Sobre Juscelino Kubitschek:

“Um político notoriamente desonesto, cujo enriquecimento, seu e de seus amigos, constitui uma afronta ao país”.

Sobre João Goulart:

“Eu agarro o touro pelos chifres”. Diante dos risos da plateia, fez um adendo infame: “E ele os têm”.

Sobre o presidente Castello Branco:

“O marechal é um anjo da Rua Conde Lages”. 

(Numa referência aos santos colocados nas salas de estar dos bordéis da Lapa.)

Numa trapaça do tempo, ele que sempre recorria ao termo “roubalheira”, no golpe ocorrido em dia 31 de março de 1964, depois do levante militar, logo após ele seria um dos primeiros políticos a serem cassados, e que o levou ao exílio e deu a Lacerda um breve período de esplendor.


O Corvo

Todo vestido de negro, Carlos Lacerda, expressando profundo sofrimento, esteve no movimentado velório do repórter policial do jornal Última Hora, Nestor Moreira, que havia sido espancado e morto em atrito com um policial numa delegacia de Copacabana em 1954.

A notória morbidez de Lacerda, bem como o descomedimento de sua campanha política, evidenciou-se a partir do fato de não ter sido conhecido do repórter assassinado e não gostar de crônicas policiais. Por encomenda de Samuel Wainer, Lan, desenhou a “ave negra” que acompanhou enorme e violento editorial com o título de “O Corvo”.

Tornando-se imediatamente em apelido, por consagração popular, o “corvo”, acompanhou Lacerda até os últimos dias de sua carreira, permanecendo como imagem de referência histórica da política brasileira até os dias de hoje.

*Lan, o ítalo-argentino-uruguaio cartunista lendário que ficou nacionalmente conhecido ao retratar Carlos Lacerda como “O Corvo”, em 1954, na primeira página da “Última Hora” de Samuel Wainer.


Em 1964:
Magalhães Pinto, aplaudindo, Castelo Branco, tapando os ouvidos,
e Carlos Lacerda entregando geral.

A história da caricatura do corvo

Por Alex Solnik, para o 247

Entrevista com Lan


O Corvo foi uma história até engraçada. Eu era muito novo no Brasil e não entendia quase nada! O Lacerda naquela época estava culpando a polícia do Getúlio Vargas pela morte do Nestor Moreira, o jornalista de “A Noite”, que foi espancado numa delegacia de Copacabana. Na verdade, ele morreu de enfarte. Mas aproveitaram e jogaram a culpa no Getúlio. Eu estava na redação, no dia do velório do Nestor, e já estava saindo, eram oito da noite, eu tinha um encontro com uma mulata na Praça Onze... que ficava perto de um hotelzinho que eu frequentava muito... O que aconteceu? Na hora que eu estou saindo, o Dudu, que era o contínuo do Samuel Wainer, me pega na porta do elevador e diz: “O Samuel quer falar com você”. E eu: “Nem pensar! Eu já saí”. “Não, ele deu ordem de te pegar em casa!” Fui falar com o Samuel. Ele disse: “Olha, aquele filho da puta do Lacerda estava no velório todo vestido de preto fazendo demagogia com a morte do Nestor... Faz um papa-defunto, alguma coisa no gênero, algo meio sinistro”. Fui voando para minha prancheta, ia ter que mandar o desenho em quatro colunas, na primeira página. Aí pensei: faço um urubu? Mas eu não lembrava a cara do urubu. Então decidi: corvo! E fui de corvo. Fiz um corvo. Fiz o desenho em dez minutos. Cheguei ao encontro às oito e vinte.

Graças a Deus, ela se atrasou um pouquinho. Mandei o desenho e fui para o hotel. Passei uma noite maravilhosa. No dia seguinte fiquei com aquele peso na consciência: que merda que eu fiz, fiz aquele desenho escroto, um corvo. Quando chego no jornal, às 10 da manhã, no meio da redação estava o Samuel Wainer, o Danton Coelho, presidente do PTB, o Elói Dutra e Baby Bocaiúva. Estavam os quatro ali. Quando Samuel me viu entrar, me chamou. Pensei: lá vem bronca. Aí, ele me apresenta ao Danton Coelho, Danton me dá um abraço e me diz: “Lan, parabéns, você fez uma obra-prima de uma profundidade psicológica incrível porque você desencavou a alma turva desse filho da puta!”. Eu digo: “Viva a mulata!”. Eu nem sabia dessa profundidade psicológica... Eu matei o desenho, louco para encontrar a mulher. E o desenho marcou o Lacerda para o resto da vida!

E no dia seguinte o Paulo Silveira fez um editorial intitulado “O Corvo” que reproduziu outra vez o desenho. O Lacerda, num discurso, em Bauru, disse que o desenho só poderia ter sido feito por um espanhol safado que trabalha na “Última Hora”. O espanhol era eu! Você acredita? Quando ele se candidatou anos depois ao governo da Guanabara, a agência de publicidade que estava fazendo a campanha dele me chamou, a pedido do Lacerda, para eu, que tinha feito o símbolo negativo dele, fazer o símbolo positivo. Claro que eu recusei. Todo mundo me conhecia como o autor do corvo, eu ia fazer um beija-flor? Uma pombinha branca?


4 comentários:

  1. Carlos Frederico Werneck de Lacerda, proveniente de uma família socialista, recebeu os pré-nomes de Marx e Engel. Foi, na juventude, militante comunista até entender e tornar-se anticomunista ferrenho, como muitos. Essa história de "anjo da conde lage" traz em si a dubiedade das linguagens cifradas. Ao mesmo tempo, mostra que o anjo virado não vê, ou faz questão de não ver, o que acontece no seu entorno. Era, contudo, um sofisticado modo de xingar alguém com a farpa elogiosa à distinta mãe do xingado. Afinal, as crianças nascidas dos acidentes profissionais das meninas eram e são, até os dias atuais, chamadas de anjos. Nasceu mais um anjinho. Puro, inocente e não sabe de nada. Assim meu pai me contava. Sofisticação ao chamar alguém de filho da...

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  2. Muito boa e oportuna a sua observação. Muitos não notaram a fina ironia da frase do Carlos Lacerda.

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    1. Sou de 1955. Em 64 tinha 9 anos, completados depois de 31/03. Vivi tudo isso, acontecia na minha cidade, Rio. Esses detalhes foram explicados por meu pai, nascido em 1924. E, como tenho memória privilegiada, eu me lembro de acontecimentos e detalhes que passam despercebidos. Eu vinha com meu pai pela Av. Presidente Antônio Carlos, no Castelo, próximo da Av. Franklin Roosevelt, quando, repentinamente, a região se encheu de policiais e soldados da Polícia do Exército. Eu contava com 12 anos, 13 só em maio, quando fomos avisados pra evitar a região. Foi o dia que houve uma confusão no Restaurante do Calabouço, perto de onde estávamos e uma bala perdida matou um estudante, Édson Luís. Nesse ano de 68, ainda, houve movimentos estudantis, greves e muita confusão. Eu estudava no Colégio Prado Júnior, na Tijuca, Rua Mariz e Barros, e, frequentemente, éramos obrigados a ficar presos no colégio porque os estudantes da faculdades próximas saíam em passeata em direção ao Centro. Vivi tudo isso.

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    2. Você viveu num tempo difícil, que só acabaria em 1985.

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