terça-feira, 19 de novembro de 2019

PELÉ: 1000

Carlos Drummond de Andrade*


O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer. O gol.

Que adianta escrever mil livros, como simples resultado de aplicação mecânica, mãos batendo máquina de manhã à noite, traseiro posto na almofada, palavras dóceis e resignadas ao uso incolor? O livro único, este não há condições, regras, receitas, códigos, cólicas que o façam existir, e só ele conta – negativamente – em nossa bibliografia.

Romancistas que não capturam o romance, poetas de que o poema está-se rindo à distância, pensadores que palmilham o batido pensamento alheio, em vão circulamos na pista durante 50 anos. O muito papel que sujamos continua alvo, alheio às letras que nele se imprimem, pois aquela não era a combinação de letras que ele exigia de nós. E quantos metros cúbicos de suor, para chegar a esse não-resultado!

Então o gol independe de nossa vontade, formação e mestria? Receio que sim. Produto divino, talvez? Mas, se não valem exortações, apelos cabalísticos, bossas mágicas para que ele se manifeste... Se é de Deus, Deus se diverte negando-o aos que o imploram, e, distribuindo-o a seu capricho, Deus sabe a quem, às vezes um mau elemento.

A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser da natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam?

Por que só este ou aquele chega a realizá-la? Por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário? O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de retificar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico. 

Na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tentos menos apurados não são de sua competência. Sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instantes de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos.

*(Crônica publicada no Jornal do Brasil, em 28 de outubro de 1969)

P.S. O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu a crônica acima, quando Pelé estava se aproximado do gol 1000

P.S. Em 19 de novembro de 1969, Pelé marcou o 1000 gol em todas as competições, no que foi um momento muito aguardado no Brasil. O objetivo, popularmente apelidado de O Milésimo, ocorreu em uma partida contra o Vasco da Gama, quando Pelé marcou a partir de um pênalti, no Estádio do Maracanã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário