quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Uma lição de Elis Regina*



Elis e João Marcello

(...)

Nesse mesmo ano**, fui expulso de casa pela segunda vez. Na ocasião, depois de passar o final de semana na casa de um colega de escola, retornei ao nosso apartamento no domingo à noite. Ela quis saber como tinha sido e eu contei com toda empolgação sobre minha experiência. A cada duas, três informações, ela continuava a ouvir de forma atenta, meio incrédula. “Mãe, a piscina dele tem uma cachoeira; ele tem um closet gigante, um fliperama...” E ela dizia: “Um fliperama?” “É, um fliperama?”. “É, fliperama. Tem mordomo só pra ele e um quarto gigante, do tamanho do nosso apartamento...” “Do tamanho do nosso apartamento? Verdade, filho?”, questionava. “Verdade. E um perfume de um litro!” Minha mãe já não estava achando muita graça e o tempo fechou de vez quando falei o sobrenome da família com que eu havia passado as últimas 48 horas. “Você estava na casa de quem?!” Respondi no volume mais fraco possível. Ela insistiu: “Na casa de quem?!”. Nada mais restava além de responder num tom alto e claro. Ela acabou comigo. Disse que eu sabia de onde vinha aquele dinheiro, afinal era o vice-governador de São Paulo. *** Você sabe ou é esperto apenas pra aquilo que te convém, João Marcello Bôscoli?” Estava furiosa.

Minha mãe falou de corrupção, de pessoas morrendo em filas de hospitais e passando fome por causa desse tipo de gente. E não parava. Com firmeza e aquele timbre dado pela natureza, sem gritar, seguia empilhando razões e explicações inesquecíveis. Quando desviei o olhar, ouvi: “Olha pra mim enquanto eu estiver falando com você”. Sem escapatórias. Ao final, disse estar decepcionada, não compreender onde havia errado tanto comigo e que naquela casa eu não morava mais. “Enquanto eu decido o que vou fazer com você, tu ficas no corredor.” Quando o sotaque gaúcho vinha... ai, ai, ai. “Podes usar o colchão, as roupas de cama e tomar banho aqui.” Achei se tratar do corredor dos quartos. Não era; era o corredor da área comum do prédio. Argumentei ser vergonhoso pra mim e algo mais, porém fui atropelado pela frase: “Vergonha é ter um filho que vai se divertir na casa de um corrupto que rouba de gente que não tem o que comer”.

(Do livro “Elis e Eu 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe”,
de João Marcello Bôscoli)


João Marcello Bôscoli e o livro sobre sua mãe: Elis Regina

*    Elis Regina Carvalho Costa (Porto Alegre, 17 de março de 1945São Paulo, 19 de janeiro de 1982) foi uma cantora brasileira. Conhecida por sua competência vocal, musicalidade e presença de palco, é considerada por muitos críticos a melhor cantora popular do Brasil a partir dos anos 1960 ao início dos anos 1980; para muitos, a melhor cantora brasileira de todos os tempos.

**   1980 ou 1981...

*** De 1979 a 1982, quem foi o Vice-governador de São foi José Maria Marin no governo de Paulo Maluf, que também não era flor que se cheirasse.

P.S. O ex-presidente da CBF José Maria Marin se desfez nos últimos dois anos de um patrimônio imobiliário adquirido em mais de três décadas para conseguir pagar despesas com advogados, dívidas processuais e multas nos Estados Unidos. Com as vendas, ele arrecadou R$ 37 milhões.

O ex-governador de São Paulo está preso na penitenciária de Allenwood, nos Estados Unidos, condenado a quatro anos de prisão pelos crimes de organização criminosa, fraude bancária e lavagem de dinheiro cometidos no período em que presidiu a CBF, de 2012 a 2015. 

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