Elis e João Marcello
(...)
Nesse mesmo ano**, fui expulso de
casa pela segunda vez. Na ocasião, depois de passar o final de semana na casa
de um colega de escola, retornei ao nosso apartamento no domingo à noite. Ela
quis saber como tinha sido e eu contei com toda empolgação sobre minha
experiência. A cada duas, três informações, ela continuava a ouvir de forma
atenta, meio incrédula. “Mãe, a piscina dele tem uma cachoeira; ele tem um closet gigante, um fliperama...” E ela
dizia: “Um fliperama?” “É, um fliperama?”. “É, fliperama. Tem mordomo só pra
ele e um quarto gigante, do tamanho do nosso apartamento...” “Do tamanho do
nosso apartamento? Verdade, filho?”, questionava. “Verdade. E um perfume de um
litro!” Minha mãe já não estava achando muita graça e o tempo fechou de vez
quando falei o sobrenome da família com que eu havia passado as últimas 48
horas. “Você estava na casa de quem?!” Respondi no volume mais fraco possível.
Ela insistiu: “Na casa de quem?!”. Nada mais restava além de responder num tom
alto e claro. Ela acabou comigo. Disse que eu sabia de onde vinha aquele
dinheiro, afinal era o vice-governador de São Paulo. *** Você sabe ou é esperto
apenas pra aquilo que te convém, João Marcello Bôscoli?” Estava furiosa.
Minha mãe falou de corrupção, de
pessoas morrendo em filas de hospitais e passando fome por causa desse tipo de
gente. E não parava. Com firmeza e aquele timbre dado pela natureza, sem
gritar, seguia empilhando razões e explicações inesquecíveis. Quando desviei o
olhar, ouvi: “Olha pra mim enquanto eu estiver falando com você”. Sem
escapatórias. Ao final, disse estar decepcionada, não compreender onde havia
errado tanto comigo e que naquela casa eu não morava mais. “Enquanto eu decido
o que vou fazer com você, tu ficas no corredor.” Quando o sotaque gaúcho
vinha... ai, ai, ai. “Podes usar o colchão, as roupas de cama e tomar banho
aqui.” Achei se tratar do corredor dos quartos. Não era; era o corredor da área
comum do prédio. Argumentei ser vergonhoso pra mim e algo mais, porém fui
atropelado pela frase: “Vergonha é ter um filho que vai se divertir na casa de
um corrupto que rouba de gente que não tem o que comer”.
(Do livro “Elis e Eu
11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe”,
de João Marcello
Bôscoli)
* Elis Regina Carvalho Costa (Porto Alegre,
17 de março
de 1945
− São Paulo, 19 de janeiro
de 1982)
foi uma cantora
brasileira.
Conhecida por sua competência vocal, musicalidade e presença de palco, é considerada
por muitos críticos a melhor cantora popular do Brasil a partir dos anos 1960
ao início dos anos 1980; para muitos, a melhor cantora brasileira de todos os
tempos.
** 1980 ou 1981...
*** De 1979 a 1982, quem foi o
Vice-governador de São foi José Maria Marin no governo de Paulo Maluf, que
também não era flor que se cheirasse.
P.S. O ex-presidente da CBF José Maria
Marin se desfez nos últimos dois anos de um patrimônio imobiliário adquirido em
mais de três décadas para conseguir pagar despesas com advogados, dívidas
processuais e multas nos Estados Unidos. Com as vendas, ele arrecadou R$ 37
milhões.
O ex-governador de São Paulo está
preso na penitenciária de Allenwood, nos Estados Unidos, condenado a quatro
anos de prisão pelos crimes de organização criminosa, fraude bancária e lavagem
de dinheiro cometidos no período em que presidiu a CBF, de 2012 a 2015.
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