segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O álbum brasileiro mais cultuado no mundo

Depoimento de João Marcelo Bôscoli*


As primeiras imagens na minha cabeça ligadas a estúdio (e à própria vida) são do XXX Studios em Los Angeles, durante a gravação do álbum Elis & Tom em 1974) obra da Elis; Tom convidado). Embora fosse a gravação do álbum brasileiro mais respeitado e cultuado no mundo, o maior de Elis, o maior de Tom, lembro-me de jogar bola (de fita adesiva) dentro do espaço. Fora isso, algumas recordações da Disneyland, meu casaco vermelho, calça jeans e botinha ortopédica branca, afagos do Tom, a festa na técnica ao ouvirem as canções, o César com colete, camisa branca clássica em seus quadriculados finos de cinza e gravata, a cantora Wanderlea. Wanderlea? Sim, a própria. Como eu estava dando muito trabalho, a Ternurinha − então moradora da cidade − ajudou minha Mãe e recebeu-me na sua casa. O objetivo era ganhar um refresco nas sessões de gravação. Ao vê-la pela primeira vez, contam, fiquei vidrado, pasmado. Escondi a chupeta no bolso. Queria namorar aquela Estátua da Liberdade loura, sei lá por quê; tinha 4 anos. Recordo fechar uma porta e pedir pra ela tirar a roupa.

São poucas as reminiscências dessa viagem. Ainda assim, tudo lembrado foi confirmado por meio de muitas fotografias e filmes. Não eram interpretações ou lacunas preenchidas por fantasias de uma criança. As coisas estavam lá. Era o gravador de um quarto de polegada, a mesa de madeira, algumas plantas verdes, eu agarrado nela, o suéter e os charutos do Tom. Partículas em suspensão e o sol no oeste da Califórnia são uma combinação inebriante pra memória. A luz era essa: natural. Ou a dos refletores alugados pelo diretor Roberto de Oliveira, empresário da Elis, responsável pela captação de imagens e irmão do cantor e compositor Renato Teixeira.

É fácil fundir os diversos depoimentos ouvidos durante minha vida inteira às lembranças reais da capital do cinema, ampliando as experiências originais. Talvez por senso de sobrevivência, fui construindo uma biblioteca emocional mental com esse tipo de experiência: memórias ampliadas. Sou incapaz de traduzi-las; só consigo senti-las. Por isso e pelo propósito original deste registro, fico circunscrito ao que lembro, do jeito que lembro. Ali estava meu grupo favorito: César Mariano (piano, teclados e arranjos), Luizão (baixo), Hélio Delmiro (guitarra) e o Paulinho Braga (bateria) − este, um dos meus músicos favoritos. Certa vez durante um ensaio, em determinado momento, minha Mãe perdeu-me de vista. A preocupação inicial em segundos tornou-se desespero. Eram anos de chumbo. Parte da equipe já estava na rua pensando no pior. No meio dessa tensão, Paulinho apareceu e aclamou Elis. Eu estava dormindo dentro do bumbo da sua bateria. Esse é o tamanho da sua musicalidade: seu bumbo adormece uma criança.

Trinta anos depois, trabalhando na restauração, mixagem e remasterização do projeto Elis & Tom, foi engraçado e comovente ouvi-la comentando na gravação ter dormido pouco porque eu não estava deixando, em um diálogo com Jobim. Na hora pensei: Poderia ter permanecido no Brasil; era um projeto complexo. Mas ela decidiu levar o primogênito. Pedro ainda não havia nascido. E mais: segundo Ronaldo, ele soube de tudo pelos meios de comunicação.

Como ela conseguiu sair do seu país comigo e entrar nos Estados Unidos sem a permissão do meu pai, mesmo sendo minha Mãe? Nunca saberei. Ninguém, por toda a minha vida, soube me explicar esse movimento. Belo começo. E “Só tinha de ser com você” continua sendo nosso hino de amor.

Foi em Los Angeles, através do som das caixas gravado pelo futuro multiganhador de Grammys, o engenheiro Humberto Gatica, o início da minha percepção do quão única era a voz da minha Mãe. E também havia os comentários dos músicos, do Tom, dos produtores. Todos falavam dela como uma força da natureza, alguém pelo qual o canto em si manifestava-se. Senti forte como se fosse eu a cantar. Amava minha Mãe e Elis a cada dia mais.

Do livro:
 “Elis e Eu 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe”,
de João Marcelo Bôscoli


Elis com João Marcelo


Ronaldo Bôscoli, João Marcelo e Elis Regina


Elis, João Marcelo, Pedro e Maria Rita

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