Depoimento de João
Marcelo Bôscoli*
As primeiras imagens na minha
cabeça ligadas a estúdio (e à própria vida) são do XXX Studios em Los Angeles , durante a
gravação do álbum Elis & Tom em
1974) obra da Elis; Tom convidado). Embora fosse a gravação do álbum brasileiro
mais respeitado e cultuado no mundo, o maior de Elis, o maior de Tom, lembro-me
de jogar bola (de fita adesiva) dentro do espaço. Fora isso, algumas
recordações da Disneyland, meu casaco vermelho, calça jeans e botinha
ortopédica branca, afagos do Tom, a festa na técnica ao ouvirem as canções, o
César com colete, camisa branca clássica em seus quadriculados finos de cinza e
gravata, a cantora Wanderlea. Wanderlea? Sim, a própria. Como eu estava dando
muito trabalho, a Ternurinha − então moradora da cidade − ajudou minha Mãe e
recebeu-me na sua casa. O objetivo era ganhar um refresco nas sessões de
gravação. Ao vê-la pela primeira vez, contam, fiquei vidrado, pasmado. Escondi
a chupeta no bolso. Queria namorar aquela Estátua da Liberdade loura, sei lá
por quê; tinha 4 anos. Recordo fechar uma porta e pedir pra ela tirar a roupa.
São poucas as reminiscências
dessa viagem. Ainda assim, tudo lembrado foi confirmado por meio de muitas
fotografias e filmes. Não eram interpretações ou lacunas preenchidas por
fantasias de uma criança. As coisas estavam lá. Era o gravador de um quarto de
polegada, a mesa de madeira, algumas plantas verdes, eu agarrado nela, o suéter
e os charutos do Tom. Partículas em suspensão e o sol no oeste da Califórnia
são uma combinação inebriante pra memória. A luz era essa: natural. Ou a dos
refletores alugados pelo diretor Roberto de Oliveira, empresário da Elis,
responsável pela captação de imagens e irmão do cantor e compositor Renato
Teixeira.
É fácil fundir os diversos
depoimentos ouvidos durante minha vida inteira às lembranças reais da capital
do cinema, ampliando as experiências originais. Talvez por senso de
sobrevivência, fui construindo uma biblioteca emocional mental com esse tipo de
experiência: memórias ampliadas. Sou incapaz de traduzi-las; só consigo
senti-las. Por isso e pelo propósito original deste registro, fico circunscrito
ao que lembro, do jeito que lembro. Ali estava meu grupo favorito: César
Mariano (piano, teclados e arranjos), Luizão (baixo), Hélio Delmiro (guitarra)
e o Paulinho Braga (bateria) − este, um dos meus músicos favoritos. Certa vez
durante um ensaio, em determinado momento, minha Mãe perdeu-me de vista. A
preocupação inicial em segundos tornou-se desespero. Eram anos de chumbo. Parte
da equipe já estava na rua pensando no pior. No meio dessa tensão, Paulinho
apareceu e aclamou Elis. Eu estava dormindo dentro do bumbo da sua bateria.
Esse é o tamanho da sua musicalidade: seu bumbo adormece uma criança.
Trinta anos depois, trabalhando
na restauração, mixagem e remasterização do projeto
Elis & Tom, foi engraçado e comovente ouvi-la comentando na gravação
ter dormido pouco porque eu não estava deixando, em um diálogo com Jobim. Na
hora pensei: Poderia ter permanecido no
Brasil; era um projeto complexo. Mas
ela decidiu levar o primogênito. Pedro ainda não havia nascido. E mais: segundo
Ronaldo, ele soube de tudo pelos meios de comunicação.
Como ela conseguiu sair do seu
país comigo e entrar nos Estados Unidos sem a permissão do meu pai, mesmo sendo
minha Mãe? Nunca saberei. Ninguém, por toda a minha vida, soube me explicar
esse movimento. Belo começo. E “Só tinha de ser com você” continua sendo nosso
hino de amor.
Foi em Los Angeles , através
do som das caixas gravado pelo futuro multiganhador de Grammys, o engenheiro
Humberto Gatica, o início da minha percepção do quão única era a voz da minha
Mãe. E também havia os comentários dos músicos, do Tom, dos produtores. Todos
falavam dela como uma força da natureza, alguém pelo qual o canto em si
manifestava-se. Senti forte como se fosse eu a cantar. Amava minha Mãe e Elis a
cada dia mais.
Do livro:
“Elis e Eu 11 anos, 6 meses e 19 dias com
minha mãe”,
de João Marcelo
Bôscoli
Elis com João Marcelo
Ronaldo Bôscoli, João Marcelo e Elis Regina
Elis, João Marcelo, Pedro e Maria Rita
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