segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Lisbon Revisited

 (1923)

 Álvaro de Campos*

 

Não: não quero nada

Já disse que não quero nada. 

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer. 

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral! 

Tirem-me daqui a metafísica!

Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) −

Das ciências, das artes, da civilização moderna! 

Que mal fiz eu aos deuses todos? 

Se têm a verdade, guardem-na! 

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

Com todo o direito a sê-lo, ouviram? 

Não me macem, por amor de Deus! 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.

Assim, como sou, tenham paciência!

Vão para o diabo sem mim,

Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!

Para que havemos de ir juntos? 

Não me peguem no braço!

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.

Já disse que sou sozinho!

Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia! 

Ó céu azul − o mesmo da minha infância −

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral e mudo,

Pequena verdade onde o céu se reflete!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! 

*****

* Um dos pseudônimos de Fernando Pessoa. 

Lisboa Revisitada reúne poemas sublimes que nos convidam a ver Lisboa pelos olhos do maior poeta moderno português. Nele encontramos sete poemas de Álvaro de Campos que têm a cidade como fundo e fonte de inspiração, a que se juntam as fabulosas ilustrações de Pedro Sousa Pereira. Com posfácio de Richard Zenith, o novo livro desta coleção representa a vida humana na sua realidade crua, servindo de contrapeso, ou contraponto, ao universo de especulação teórica e metafísica que ocupou grande parte da vida mental do autor. (…) A vida corriqueira de Lisboa é o que tantas vezes salva Álvaro de Campos (ou Fernando Pessoa) de si mesmo, conforme escreve.

Ps. Este poema está na internet na interpretação dos atores; Antônio Abujamra e Ivan Lima.

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