domingo, 22 de novembro de 2020

Eu sou do tempo...

 Paulo Sant¢Ana


Eu sou do tempo dos refrigerantes Grapete, Marabá e Crush.

Eu sou do tempo dos chapéus Sarkil, Prada e Ramenzoni, do Anil Reckitt, dos urinóis Rosário.

Sou do tempo dos cigarros Aspásia, Liberty Ovais, Hudson com Ponteira, Belmonte, Tufuma, Phriné, Negritos, Lincoln e Astória. E das cigarrilhas Talvis.

Sou do tempo da bala quebra-queixo e da rapadura-puxa. Sou do tempo do Melado Patrulhense, da bolinha de inhaque e da bolinha aça, do bilboquê, do bambolê, da Bandeira do Divino e do realejo que enchia de alegria as ruas da minha infância: “Naquele bairro afastado/ onde em criança eu vivia/ a remoer melodias/ de uma ternura sem par/ passava todas as tardes/ um realejo tristonho/ passava como num sonho/ um realejo a tocar”.

Eu sou do tempo do fumo em corda, da banha em tabletes de um quilo, sou do tempo do querosene vendido no armazém.

Sou do tempo da calça de tussor, do corte inglês, da camisa volta-ao-mundo, do sapato de trissê e dos Tamancos Holandeses: “Ho, holandesa boneca de tranças/ não tens compaixão/ o plac-plac dos teus tamanquinhos/ machuca o meu coração”.

Sou do tempo da goiabada cascão, da calça Lee, das Pílulas de Vida do Doutor Ross, do Rhum Creosotado, da Emulsão de Scott, e do jingle no rádio: “Roma ou Lisboa/ em Londres, Nova York ou Paris/ todos bebem Martini porque/ Martini é marca mundial/ Martini branco doce, Martini tinto/ Martini seco/ Que paladar sensacional”.

Sou do tempo do mogango com leite, da canjica ao molho de vinho ou de leite, da canjiquinha, sou do tempo do Saphrol, do Phimatosan, do radinho Spica, sou do tempo do Biotônico Fontoura, das balas com figurinhas difíceis, as Balas do Rádio, a figurinha difícil era o Cândido Norberto, com jingle: “Artistas do rádio/ de quem se fala/ agora se encontram na bala/ a Bala do Rádio saborosa e sã/ que traz os artistas de quem eu sou fã”.

Sou do tempo da cinta-liga e do tempo em que vestido se chamava costume. 

Sou do tempo do sabonete Lifebuoy, do xarope São João. E sou do tempo da Pomada Minâncora. Sou do tempo do Emplastro Poroso Sabiá e do Creme de Beleza Rugol. Sou do tempo do óleo de rícino, do xarope Bromil, o amigo do peito, e do Regulador Xavier, o amigo de confiança da mulher.

Sou do tempo do colírio Moura Brasil. Sou do tempo da limonada purgativa e do sal amargo. Sou do tempo do Brylcreem e do Glostora, do Vinho Reconstituinte Silva Araújo.

Sou do tempo em que todos os telefones eram pretos e todas as geladeiras eram brancas.

Sou do tempo das polainas e das galochas.

Sou do tempo dos programas de rádio Grande Rodeio Coringa e Rádio Sequência. 

Eu sou do tempo em que não havia violência. Os ladrões, como os batedores de carteira, agiam com carinho e delicadeza, nunca feriram ou mataram alguém.

Eu sou do tempo das serenatas, dos sonetos, dos acrósticos, das alianças de noivado, sou do tempo do namoro na sala com chá-de-pera. Enfim, eu estou deslocado porque eu sou do tempo do amor. 

Texto publicado em Zero Hora


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