quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Último Bochincho

 Jayme Caetano Braun

O resmunguento nhenhém da acordeona conversava,

fazia costa, roncava, rengueando no vai e vem,

mal e mal se enxergava alguém, entre murmúrio e relincho,

ali naquele bochincho, pras bandas do Itaroquém. 

Tirei a china trigueira, com toda a delicadeza,

ela me olhou com surpresa e foi dizendo altaneira:

“Não é que a mamãe não queira, nem que o papai me impedisse,

mas ele sempre me disse: Não dança com bagaceira! 

Fiquei que nem mamangava e o candeeiro estremeceu,

nem o tinhoso entendeu o beleléu que se armava,

a gaita me debochava, e atorei num sopetão

em virtude do carão que aquela maula me dava. 

Saltou fumaça com poeira, quando cortei a cordeona,

bem pelo meio a chorona, ao correr da carneadeira.

Parou de repente a zoeira, ficou só o ar fumacento,

e o meu arrependimento, pra durar a vida inteira. 

Cortar uma gaita em duas, só por capricho é um pecado,

o velho órgão sagrado das nossas missas charruas,

quantas pragas de chiruas e desaforos malucos

e relampear de trabucos, tinir de adagas e puas. 

Para contar o enredo, isso não é bem assim,

no bárbaro rintintim onde não vale segredo,

ali o índio que tem medo, nem que não queira se entangue,

sentindo o cheiro de sangue, e o choro do chinaredo. 

E o que não viu, ficou vendo, o resultado do talho,

como quem corta um baralho, num jogo em que está perdendo.

Foi como um chiado fervendo, num olheiro de formiga,

quem não tem nada com a briga, peleia se defendendo. 

Num medonho solavanco, perdeu pé a bugra Raimunda,

larguei um pardo cacunda e um outro meio lonanco,

e o gaiteiro, atrás de um banco, benzido a moda gaúcha,

contra bala de garrucha e folha de ferro branco. Depois de tudo acabado, isso foi lá pelas tantas...

lombos cortados, gargantas e bugre descaderado,

sangue fresco misturado com gordura de candeeiro,

mas saiu limpo o gaiteiro, que o tocador é sagrado! 

Quando veio o comissário, pra tratar dos seus assuntos,

pra encomendar os defuntos veio também o vigário.

Inda hoje o vizindário, quando fala se arrepia,

nunca mais desde esse dia, festejei aniversário. 

E a china? 

Não sei da china, pra onde foi, e adonde veio,

lambe sal nalgum rodeio da pampa continentina,

cortando talvez a clina, na minguante de setembro,

por castigo ainda me lembro, daquela maula brasina! 

****

Esse texto está na internet declamado pelo próprio autor: Jayme Caetano Braun. 

Glossário: 

Bochincho: Arrasta-pé, fandango, baile de campanha. 

Itaroquém: Microrregião de Santo Ângelo. 

China: Mulher descendente de índio ou caboclo, de cor morena. 

Bagaceira: gente de classe baixa. 

Mamangava: Espécie de abelha, produz mel de pouca qualidade. 

Candeeiro: Aparelho de iluminação alimentado por óleo. 

Maula: Diz-se do homem ou da mulher que é ruim. 

Cordeona: Espécie de gaita de foles. 

Carneadeira: Faca usada para carnear rês. 

Charrua: Uma das três grandes tribos que habitavam parte do Rio Grande do Sul. 

Chirua: A mulher do índio; mulher de cor morena sem ser indígena. 

Relampear: O mesmo que relampejar. 

Trabuco: Revólver. 

Pua: Espécie de espora de aço que se coloca no galo de rinha. 

Entangue: Se encolhe. 

Vizindário: Conjunto de pessoa que mora nas redondezas de um lugar. 

Clina: Pelo do pescoço do cavalo, cabelos, cabeleira de mulher. 

Brasina: Da cor de brasa, de temperamento ardente como a brasa.

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