Jayme Caetano Braun
O resmunguento nhenhém da
acordeona conversava,
fazia costa, roncava,
rengueando no vai e vem,
mal e mal se enxergava
alguém, entre murmúrio e relincho,
ali naquele bochincho, pras bandas do Itaroquém.
Tirei a china trigueira, com
toda a delicadeza,
ela me olhou com surpresa e
foi dizendo altaneira:
“Não é que a mamãe não
queira, nem que o papai me impedisse,
mas ele sempre me disse: Não dança com bagaceira!
Fiquei que nem mamangava e o
candeeiro estremeceu,
nem o tinhoso entendeu o
beleléu que se armava,
a gaita me debochava, e
atorei num sopetão
em virtude do carão que aquela maula me dava.
Saltou fumaça com poeira,
quando cortei a cordeona,
bem pelo meio a chorona, ao
correr da carneadeira.
Parou de repente a zoeira,
ficou só o ar fumacento,
e o meu arrependimento, pra durar a vida inteira.
Cortar uma gaita em duas, só
por capricho é um pecado,
o velho órgão sagrado das
nossas missas charruas,
quantas pragas de chiruas e
desaforos malucos
e relampear de trabucos, tinir de adagas e puas.
Para contar o enredo, isso
não é bem assim,
no bárbaro rintintim onde não
vale segredo,
ali o índio que tem medo, nem
que não queira se entangue,
sentindo o cheiro de sangue, e o choro do chinaredo.
E o que não viu, ficou vendo,
o resultado do talho,
como quem corta um baralho,
num jogo em que está perdendo.
Foi como um chiado fervendo,
num olheiro de formiga,
quem não tem nada com a briga, peleia se defendendo.
Num medonho solavanco, perdeu
pé a bugra Raimunda,
larguei um pardo cacunda e um
outro meio lonanco,
e o gaiteiro, atrás de um
banco, benzido a moda gaúcha,
contra bala de garrucha e folha de ferro branco. Depois de tudo acabado, isso foi lá pelas tantas...
lombos cortados, gargantas e
bugre descaderado,
sangue fresco misturado com
gordura de candeeiro,
mas saiu limpo o gaiteiro, que o tocador é sagrado!
Quando veio o comissário, pra
tratar dos seus assuntos,
pra encomendar os defuntos
veio também o vigário.
Inda hoje o vizindário,
quando fala se arrepia,
nunca mais desde esse dia, festejei aniversário.
E a china?
Não sei da china, pra onde
foi, e adonde veio,
lambe sal nalgum rodeio da
pampa continentina,
cortando talvez a clina, na
minguante de setembro,
por castigo ainda me lembro, daquela maula brasina!
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Esse texto está na internet declamado pelo próprio autor: Jayme Caetano Braun.
Glossário:
Bochincho: Arrasta-pé, fandango, baile de campanha.
Itaroquém: Microrregião de Santo Ângelo.
China: Mulher descendente de índio ou caboclo, de cor morena.
Bagaceira: gente de classe baixa.
Mamangava: Espécie de abelha, produz mel de pouca qualidade.
Candeeiro: Aparelho de iluminação alimentado por óleo.
Maula: Diz-se do homem ou da mulher que é ruim.
Cordeona: Espécie de gaita de foles.
Carneadeira: Faca usada para carnear rês.
Charrua: Uma das três grandes tribos que habitavam parte do Rio Grande do Sul.
Chirua: A mulher do índio; mulher de cor morena sem ser indígena.
Relampear: O mesmo que relampejar.
Trabuco: Revólver.
Pua: Espécie de espora de aço que se coloca no galo de rinha.
Entangue: Se encolhe.
Vizindário: Conjunto de pessoa que mora nas redondezas de um lugar.
Clina: Pelo do pescoço do cavalo, cabelos, cabeleira de mulher.
Brasina: Da cor de brasa, de temperamento ardente como a brasa.
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