quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

As aves

Garcia Redondo


No fundo da chácara, numa touceira de arbustos, um me­nino encontrou um ninho, onde três avezinhas mal emplumadas dormiam.

Contente do seu achado e no desejo inconsciente de se apo­derar dele, o menino meteu o braço por entre a trama dos galhos e das folhas e aproximou a mão cobiçosas dos pobres inocentes, que logo ergueram para ele o biquinho guloso.

Nesse momento, o menino ouviu pipilos angustiados e o sus­surro de uma asa que lhe roçou pelo rosto. Depois sentiu que essa asa lhe batia nos olhos e que um bico audaz lhe espicaçava o rosto.

Tímido, receoso dessa inesperada agressão, retirou o braço e olhou. Era um tico-tico, a mãe das avezinhas do ninho, que defendia a prole, e continuou a atacar o menino, enquanto ele permaneceu junto à touceira de arbustos.

Saindo dali, muito admirado da audácia e da coragem dessa ave minúscula, o menino contou o caso à mãe:

E a mãe disse-lhe:

− Não há que estranhar, meu filho; essa avezinha faz pelos filhos o que eu faria por ti. Que pensarias de mim, se, um dia, um homem mau e forte entrasse nesta casa e procurasse levar-te, sem que eu lhe embargasse o passo? Pensas que, nessas oca­siões terríveis, as mães medem as suas forças? Nunca; o amor materno incute-lhes coragem e elas, sem avaliar as consequências de seu ato, pensando apenas nos filhos, procuram arrancá-los ao perigo iminente, saltando à frente do agressor e atacando-o. Agora dize-me cá: Para que querias tu essas avezinhas mal emplu­madas, que para nada servem? Não pensaste na dor que causarias aos pais, privando-os desses filhos amados? A ave, como os seres humanos, como todos os seres animados, tem coração e tem alma. Ela sente como nós, sofre e chora como nós, como nós tem a sen­sação do prazer. Alegre quando canta, triste quando pia, irrita­da ou desesperada quando grita, ela manifesta pela voz e pelo gesto o seu estado d′alma. Se a acaricias, tens nela uma amiga; se a maltratas, principalmente os seus filhos, tens nela uma ini­miga rancorosa que nunca te perdoará o agravo. Mas, para que maltratar a ave, se ela é por natureza tão boa, tão meia e tão útil? A maioria alegra-nos e delicia-nos com o seu canto. A maioria fornece-nos ovos deliciosos que nos alimentam. Todas nos dão a pena que aformoseia a nossa toalete e que nos aquece, quando convertida em edredons, travesseiros e colchões macios. Acresce que a maioria é útil, porque livra os nossos campos e os nossos quintais das larvas e insetos daninhos que devastam as plantações. Se elas não fossem boas e úteis, os homens não asse­melhariam os anjos às aves, dando-lhes asas, que são o símbolo da pureza e da bondade. Não faças mal às aves, meu filho, nem procures tolhê-las na sua liberdade, porque é em liberdade que elas devem viver para nos serem verdadeiramente úteis.

O menino, atento e enternecido, ouviu a mãe e, quando ela acabou de falar, apoderou-se de uma gaiola onde estava um pin­tassilgo aprisionado, abriu a porta e deu-lhe a liberdade.

A mãe disse-lhe comovida:

−É assim que eu te amo, meu filho. Tens um bom coração.

E ele, contente, vendo o pintassilgo a voar, chilreando, ex­clamou:

− Nunca mais, mamãe, nunca mais destruirei ninhos, por­ quê...

− Porque os ninhos são berços, meu filho, acrescentou a mãe.

*****

(Do livro “Seleta em Prosa e Verso”, Alfredo Clemente Pinto)

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 59ª edição. Livraria Martins Livreiro – Editor Porto Alegre


Alfredo Clemente Pinto (Porto Alegre, 18541938) foi um educador, escritor e político brasileiro.

Foi eleito deputado estadual, à 21ª Legislatura da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, de 1891 a 1895.

É autor de uma famosa obra didática, utilizada por longos anos nas escolas gaúchas, intitulada Seleta em Prosa e Verso.

Outra versão

O amor materno

Garcia Redondo*


Mãe e filho no jardim, ilustração de John Rae, 1922.

No fundo da chácara, numa touceira de arbustos, um menino encontrou um ninho, onde três avezinhas mal emplumadas dormiam. Contente do seu achado e no desejo inconsciente de se apoderar dele, o menino meteu o braço por entre a trama dos galhos e das folhas e aproximou a mão cobiçosa dos pobres inocentes, que logo ergueram para ele o biquinho e o sussurro duma asa que lhe roçou pelo rosto. Depois sentiu que essa asa lhe batia nos olhos e que um bico audaz lhe espicaçava o rosto. Tímido, receoso dessa inesperada agressão, retirou o braço e olhou. Era um tico-tico, a mãe da avezinhas no ninho, que defendia a prole, e continuou a atacar o menino, enquanto ele permaneceu junto à touceira de arbustos. Saindo dali, muito admirado da audácia e da coragem dessa ave minúscula, o menino contou o caso à mãe. E a mãe lhe disse:

− Não há que estranhar, meu filho: essa avezinha faz pelos filhos o que eu faria por ti.

 *****


*Manuel Ferreira Garcia Redondo (Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1854 − São Paulo, 6 de outubro de 1916) foi um engenheiro, jornalista, professor, contista e teatrólogo brasileiro, e membro fundador da Academia Brasileira de Letras.


Nenhum comentário:

Postar um comentário