quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

As duas bilhas



Cada qual com seu igual. Deste nosso provérbio parece foi tomado o doutrinal apólogo das duas bilhas: uma de barro, outra de cobre, levadas rio abaixo com a força da cheia. Rogou a de cobre à de barro que se chegasse a ela, para que juntas resistissem melhor ao ímpeto das águas.

“Não me convém, respondeu ela, a vossa amizade e vizinhança; porque, ou suceda topar eu convosco ou vós comigo, sempre vós ficareis inteira e eu quebrada.”

M. Bernardes.

Era o tempo da revolta de Custódio José de Melo. Rio de Janeiro jazia sob terror das balas. Receosos de carência de garantias aos estrangeiros, reuniram-se os membros do Corpo Diplomático, sob a presidência do seu decano, o conde de Parati, representante de Portugal, a fim de deliberarem sobre o caso. Após muita hesitação, − não ousando tomar uma atitude coletiva −, re­tiveram agir cada um de per si.* O representante da Inglaterra passou a Carlos de Carvalho, ministro do Exterior, uma nota em que comunicava, que, dentro em breve, estaria na Guanabara uma esquadra inglesa, para garantir a vida dos súditos da Grã-Bretanha Respondeu-lhe Carlos de Carvalho, que o assunto era de tal forma melindroso que aconselhava fosse ouvido o próprio Presidente. Confiante no prestígio e na força da Nação que representava, dirigiu-se o embaixador a palácio. E’ introduzido na sala da audiência. Após os cumprimentos, toma a palavra:

− Excelência desejava saber como seria recebida no Rio uma esquadra inglês que teria o único fim de garantir a vida dos súditos de S. Majestade Britânica?

Floriano, com aquela serenidade que nenhum perigo, nenhuma ameaça conseguia perturbar, respondeu, impávido:

− À bala!…

Jonatas Serrano

*Per si ou de per si, oriundo do Latim de per si e, quanto utilizado, pretende dizer: por si, de modo individual ou isolado.
Cabe a ele, de per si, reunir as provas da má conduta de seu adversário.

*****

Acabara de ser exposto o quadro de Pedro Américo “Ba­talha de Avaí”. Pedro II, que se vangloriava de exímio conhece­dor das obras de arte, lá se foi com a sua corte a ver o novo tra­balho do afamado pintor. Pararam todos em frente ao quadro E o imperador, desde logo, pôs-se a fazer a análise da bela pintu­ra. Elogiou o conjunto, admirou os pormenores, aplaudiu o efeito do colorido. Enquanto isso, a um canto Caxias olhava, de esgue­lha e simultaneamente, o quadro, o Imperador e o artista. Seus dentes cerrados murmuravam qualquer coisa de incompreensível. Um dos cortesões, notando-lhe o semblante enfarruscado, vira-se para o Imperador e diz-lhe baixinho ao ouvido:

− Majestade, pa­rece que o general não está gostando do quadro…

Pedro II volta-se surpreso. Como? Haveria alguém que ou­sasse ter pensamento diferente do seu? Ele já havia elogiado sem restrições a pintura, felicitara o autor, e alguém desaprovava o seu juízo?

E entre autoritário e persuasivo:

− General, faltam apenas os seus parabéns.

Foi então que a fisionomia do herói se fechou de todo. E, num gesto de desa­bafo, a voz surda, o olhar severo, ressentido, disse entre dentes:

− Onde foi que Pedro Américo me viu no combate, de farda aberta e de camisa aparecendo?

(ldem)

Perdoou el-rei D. Sebastião de Portugal a uma viúva do seu tesoureiro metade da dívida em que seu marido ficara obrigado à fazenda real. Não faltou quem advertisse de que parecia lance excessivo. E ele, chamando logo a viúva, que voltava contente com o bom despacho da sua petição, lhe disse:

− Entendeste-me?

− Sim, Senhor (respondeu ela): há Vossa Alteza por bem quitar-me metade da dívida.

− Não é isso, sendo que perdoo-a toda.

M. Bernardes.

O papa Sixto V, que dantes se chamava Felix Peretti, andava com bordão e cabeça baixa, fingindo-se enfermo e, para pouco, que necessitava, sendo assunto ao pontificado, de que os cardeais governassem por ele, e ele tivesse só o título honorífico, sem o exercício laborioso. Mas, tanto que foi eleito e se declararam os votos, arremessou de si o bordão e endireitou a cabeça e disse com despejo: “Até agora andava inclinado para o chão, porque buscava as chaves de São Pedro; agora me levanto, porque busco a fechadura, e quero abrir a porta do céu.”

(Idem)

Sonhou um homem que via um ovo atado na ponta do seu cobertor. Consultou a um agoureiro, que lhe disse, por interpre­tação, que naquele lugar onde dormia, estava escondido dinheiro.

Cavou o homem e achou ouro e prata. Desta deu por prê­mio ao adivinhador uma pouca parte, o qual, aceitando-a meio alegre, meio triste, disse aludindo ao ouro: “E da gema não há nada?”

(Idem)

Diógenes, filósofo cínico, cria tão pouco nas coisas deste mundo, que nem uma choupana tinha em que viver, e morava den­tro em uma cuba. Foi-o ver por maravilha Alexandre Magno e dizendo-lhe, com a sua natural munificência, que pedisse quan­to quisesse, que responderia Diógenes?

− Peço-te que não me tires o que não podes dar.

Disse isto, porque era inverno, e Alexandre, com a sombra do corpo, tirava-lhe o sol.

M. Bernardes

Entrou uma vez Alexandre Magno na oficina de Apeles, por honrar com sua presença a um sujeito tão insigne na sua arte, e começou a falar demasiadamente acerca da pintura. Apeles com brandura, cortês, mas picante, lhe disse:

− Senhor, veja que se ri o moço que mói as tintas.

(Idem)

Expôs Apeles à porta uma pintura sua, e pôs-s detrás do pano a escutar os votos e censuras várias dos que passavam. Veio um sapateiro e notou um defeito na chinela duma figura principal. Emendou Apeles a falta, e no seguinte dia tornou a passar aquele oficial: e, vendo a emenda, ficou satisfeito de si e atreveu-se a notar outra coisa na perna da mesma figura. Então Apeles, aparecendo, lhe disse:

− Não suba o sapateiro além da chinela.

(Idem)

Orando uma vez em Atenas o eloquentíssimo Demóstenes sobre matérias de importância, e advertindo que o auditório estava pouco atento, introduziu com destreza o conto ou fábula de um caminhante que alquilara um jumento, e, para se defender no descampado da força da calma, se assentara à sombra dele e o al­mocreve o demandara por maior paga, alegando que lhe aluga­ra a besta, mas não a sombra dela. Estavam os Atenienses neste passo mui aplicados, desejando saber a sentença com que se decidira aquele pleito; porém Demóstenes, no mesmo tempo, se desce da cadeira dizendo:

− Oh pejo! Oh miséria grande! Fol­gais de ouvir da sombra do jumento, e não folgais de ouvir do estado e bem público da Grécia!

(Idem)

O rei Leopoldo II da Bélgica, embora na sua vida não tivesse sido um modelo católico, não foi, entretanto anticlerical. Quando as religiosas francesas, expulsas em massa por Combes, transpuseram as fronteiras em demanda da Bélgica hospitaleira, ao rei Leopoldo II, que se achava em Paris, se dirigiu um dos ministros do governo e pediu-lhe desculpas dizendo:

− Lamentamos dar esse incômodo a V. Majestade. São elas que, uma vez expulsas, procuram o seu país.

− Não se aflija − respondeu Leopoldo II — no meu país nun­ca são demais as pessoas honestas.
  
(Textos do livro “Seleta em Prosa e Verso”,
de Alfredo Clemente Pinto)

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