quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Brincando de brincar



Meu Rio antigo, que brincavas
ao rubro som do Zé Pereira
e não conhecias as Avas
Gardners do Copa ou da Gafieira.

Pensas que a máscara e que o entrudo
valiam mais que a nova tralha?
Tu nada viste e eu já vi tudo:
amigo, o resto é zarandalha.

Gabas-me tuas fantasias
eu proclamo nosso à-vontade.
Teu carnaval eram três dias,
o de hoje o ano inteiro invade.

Teus democráticos, tenentes,
fenianos e não sei que mais
eram muito mais inocentes
que os “inocentes” atuais.

Havia o corso? O corso temos
e piratas com seus ataques
que, vibrando golpes extremos,
vão sorrindo nos cadilaques.

Ora, confete... Não reparas
Como é de uso e até de abuso?
Formas bajulatórias raras,
mais raras que o ritual druso.

Serpentina, velho, é a atitude
costumeira, e não só em março.
Nossa farra, bem menos rude,
e um faz-de-conta no ar, esparso.

Faz de conta que me divirto,
faz de conta que a vida é fácil,
faz de conta que o louro e o mirto
se juntam em coroa grácil.

Faz de conta que esse alumínio
das novas moedas é puro ouro.
(Nosso chefe, Deus ilumine-o
pelo menos no ano vindouro.)

Vês passar o bloco de sujos
− sol da Favela do Esqueleto?
Como ao tempo dos Araújos,
dança a miséria, em tom faceto.

Na Biblioteca Nacional
pregaram calungas de cor.
Vão fazer de Momo, afinal,
um instante de desamor?

As árvores não piam, mas
se piassem, Dr. Batista,
xingariam as luzes más
da ornamentação surrealista.

Os mobiles, sim, me agradaram.
Algo de novo se inaugura
e carnavais que já passaram
− dinamogênica figura −

estão brincando lá na altura.

C.D.A.*

*Carlos Drummond de Andrade. Brincando de brincar, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de março de 1957.

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