quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Ecos do carnaval

Manuel Bandeira


Entrudo na Rua do Ouvidor − 1884

Antigamente, era na Rua do Ouvidor que pulsava com mais força a vida desta heróica cidade. “Grande artéria”, chamavam-lhe os literatos e jornalistas, inclusive Coelho Neto. Era, de certa maneira, uma imagem inexata, porque na artéria está o sangue de passagem. Ora, não se passava pela Rua do Ouvidor: ia-se para a Rua do Ouvidor. Ali se parava, se namorava, se conspirava. Ali se situavam as redações dos grandes jornais, as lojas mais elegantes, os cafés e confeitarias mais frequentados. Ali é que chegavam ao clímax os acontecimentos mais notáveis da consagração pública. Quando em 1880, Carlos Gomes voltou glorioso da Itália, foi na Rua do Ouvidor que recebeu a apoteose máxima. O mesmo sucedeu com o segundo Rio Branco ao regressar da Europa para ser Ministro das Relações Exteriores. Nos três dias de Carnaval, então, a rua do Ouvidor ficava de não se poder meter um alfinete: a afluência de povo transbordava dali para as travessas, e a festa culminava com a passagem dos préstitos rua acima.

Pois bem, este ano, terça-feira gorda, por volta das três da tarde, desci de um lotação na avenida e subi a rua do Ouvidor até a rua Primeiro de Março. Estava deserta! Em certo trecho mesmo, entre Quitanda e Carmo, eu era o único transeunte! Senti-me um pouco como fantasma. Por sinal que me pareceu bom, só que um pouco melancólico, ser fantasma.

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Situação privilegiada a que desfrutamos, os moradores da avenida Beira-mar, do Obelisco até o Aeroporto: estamos no coração da cidade e somos, no entanto, paradoxalmente marginais. O Carnaval das ruas está morrendo: já cabe todo na avenida e nem sequer a toma inteira. Dela para o mar é o deserto e o silêncio.

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Naturalmente, me lembrei muito de Irene – Irene preta, Irene boa e sempre de bom humor. Passava ela o ano inteiro juntando dinheiro para gastar no Carnaval. Também, graças a ela, o boqueirão da Travessa do Cassiano brilhava nos três dias. Quarta-feira de Cinzas, às oito da manhã, estava à minha porta para o serviço. Era uma preta gorda, feira e tinha não sei que doença que lhe comia a beirada das orelhas, onde havia sempre um pozinho branco. A especialidade de Irene era a limpeza dos metais. Nas mãos dela o cobre virava ouro; todo metal branco, prata. Se as almas envolvessem os corpos, Irene não seria preta, não: seria da cor dos cobres que ela areava. Irene boa!

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Manuel Bandeira em Melhores Crônicas,
seleção e prefácio de Eduardo Coelho, Global Editora.

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