quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Declaração de princípios sem fins

Carlos Heitor Cony


Sou contra o desenvolvimento autossustentável e contra a insustentável leveza do ser. Sou contra o esgotamento dos prazos legais e contra as objurgatórias indeclináveis. Sou contra o fomento da agricultura e contra o colóquio de física nuclear. Contra o abastardamento de nossas tradições, contra o dever inelutável de consciência e contra os soluços da espiral inflacionária.

Sou contra a transparência das decisões ministeriais e contra os legítimos reclamos do operariado. Sou contra os artefatos de fabricação caseira e contra as armas de uso exclusivo das Forças Armadas. Sou contra a mais completa apuração das responsabilidades e contra a dilatação do perfil da dívida externa. Contra a camada de ozônio, contra a injusta concentração de renda e contra as colocações politicamente corretas.

Sou contra o quadro de nossas importações e contra o arbítrio das decisões apressadas. Sou contra o apaziguamento dos espíritos e contra as inalienáveis prerrogativas da pessoa humana. Contra os lídimos representantes das classes produtoras, contra os autênticos interesses de nossa soberania e contra os sagrados postulados da civilização cristã.

Sou contra a exata compreensão dos meus direitos de cidadão e contra o impostergável dever de solidariedade. Sou contra as injunções de ordem econômico-social e contra a voz da consciência, contra o tato político, contra o gosto da glória, contra o cheiro de santidade e contra os pagamentos à vista. Contra o arbítrio das decisões apressadas.

Sou contra o ovo de Colombo, a bacia de Pilatos, o tendão de Aquiles, a espada de Dâmocles, os gansos do Capitólio, as asas de Ícaro, o estalo de Vieira, a caixa de Pandora (nos tempos de Machado de Assis não se dizia “caixa”, mas ‘boceta de Pandora”) e contra a trompa de Eustáquio.

Sou contra o bico de Bunsen, o tonel de Diógenes, o teorema de Pitágoras, o disco de Newton, o gol do Gighia, o banho de Arquimedes, a casta Suzana, as rosas de Malherbe e o corvo de Poe. Sou contra a retirada da Laguna e os canhões de Navarone, contra as ilhas Sandwich, contra o estreito de Bósforo, o farol de Alexandria e o colosso de Rodes. Contra o templo de Diana e contra o desfiladeiro de Termópilas, contra o herói de Maratona e, acima de tudo, contra o quartel do Abrantes.

Sou contra a nuvem de Juno e a maldição de Montezuma, contra a vitória de Pirro, contra a casa da mãe Joana, contra a Maria vai com as outras, contra as vilas do Diogo, contra a invasão da Normandia, contra o túnel do tempo e contra a dança das horas.

Sou contra a Lei de Murphy e contra a matrona de Éfeso, contra as Guerras de Peloponeso, contra a paz de Campofórmio, contra a batalha de Itararé, contra a dieta de Worms e contra o Édito de Nantes, contra o Tratado de Tordesilhas, sobretudo contra a vingança do Zorro, contra o voto de Minerva e contra a besta do Apocalipse.

Sou contra a ampla pesquisa ao eleitorado e contra a arregimentação de consciências. Sou contra o imediato socorro às regiões desamparadas e contra o mais fino ornamento de nossa sociedade. Sou contra o transplante de ideias alienígenas e contra os óbices que entravam o nosso desenvolvimento. Contra o lúcido ensaísta e contra o rigoroso crítico teatral. Contra o inspirado poeta e contra o agudo filósofo. Contra o hábil cronista e contra o paciente pesquisador. Sobretudo, contra o vibrante jornalista.

Sou contra os valores agregados, o veredicto das urnas, a paz da família brasileira, os dois pontos para mais ou para menos das pesquisas eleitorais, sou contra todos aqueles que dispensam apresentações, contra os vasos comunicantes e, principalmente, contra as mulheres que fazem os poetas sofrerem, os governantes roubarem, os comerciantes falirem, os filósofos meditarem e os pecadores pecarem.

Do livro “O Melhor do Humor Brasileiro – Antologia”,
Organização de Flávio Moreira da Costa, Companhia das Letras.

P.S.: Esta crônica é baseada em texto antigo e já publicado em livro que a editora Leya acaba de lançar. Funciona como uma declaração de princípios sem fins, fala do trono de um plebeu que nem possui um reino para trocar por um cavalo.



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