Texto de David Coimbra*
Em
1980, no galopar do governo Figueiredo, os aparelhos repressivos da ditadura
não tinham mais a quem reprimir. A guerrilha urbana havia sido derrotada, e a
anistia fora decretada. Gabeira, que participara do sequestro do embaixador
americano, agora usava tanga de crochê na praia e pregava a “política do
corpo”. Brizola, o brasileiro que mais tempo ficou no exílio (15 anos),
desembarcou de um pequeno avião em Foz do Iguaçu ansioso para retornar o
comando do seu PTB, o que lhe seria tirado por uma astúcia de Golbery.
Então,
não havia mais a quem prender nem a quem torturar. Mas a “tigrada”, como eram
chamados os torturadores, continuavam na ativa. E agora? Como legitimar o
emprego, se não existia trabalho? Elio Gaspari descreve essa situação
constrangedora no quinto e último volume de sua obra sobre o regime militar, A
Ditadura Acabada: “... era necessário justificar a existência da máquina
repressiva. Ela encolhera, talvez à metade, mas ainda assim faltava-lhe serviço.
(...) O veterano Doutor Diogo, controlador de
informantes do DOI do I Exército, reconheceria: ʽHavia uma apatia... iam
ao cinema ou iam para casaʼ. No DOI de São Paulo, a mesma coisa: ʽAquilo passou
a ser um marasmoʼ”.
Tratava-se
de um drama de mercado: se o seu trabalho é combater inimigos, você deixa de
ter trabalho quando deixa de ter inimigos. Logo, deixa de ter importância.
A
saída dos repressores foi abrir novos campos de atuação, criando novos
inimigos. Foi aí que começaram a explodir bombas em bancas de revista,
escritórios de advocacia e jornais. Finalmente, uma carta-bomba foi enviada à
sede da OAB, matando a secretária que abriu o pacote, e outra amputou o braço
do assessor de um vereador na Câmara do Rio. Encontrar inimigos era preciso. Em
busca deles, os repressores chamavam até o general Golbery de comunista.
Essa
é a lógica de quem se justifica pelo conflito. É a lógica bolsonarista.
Bolsonaro foi eleito como contraponto às esquerdas, à “velha política” e à
corrupção. O voto em Bolsonaro não foi de construção, foi de destruição. O
leitor o identificou como oposto “a tudo isso que está aí” porque ele realmente
é oposto a tudo isso que está aí. Esse sempre foi o seu comportamento, seja no
Exército, seja na Câmara de Deputados. Bolsonaro sempre foi do contra. Ele
gosta do enfrentamento e o procura onde estiver.
Observe
o ritual diário que Bolsonaro promove na saída do Palácio da Alvorada, quando
fala a jornalistas em um brete precário, no qual profissionais da imprensa e
apoiadores do presidente se misturam. Por que ele faz isso? Se ele não gosta da
imprensa, por que fala todos os dias com repórteres? É porque identifica nos
jornalistas os seus inimigos, e Bolsonaro necessita de inimigos para se
legitimar. Assim, diante do Alvorada, ele criou o campo de batalha ideal: fala
quanto quiser e do que quiser, não interessa forma ou conteúdo, o que interessa
é que o aplauso está assegurado.
Alguns
veículos desistiram de cobrir esse evento. Todos deveriam fazer o mesmo.
Bolsonaro não está lá para ser questionado ou para informar. Ele está lá apenas
para brigar.
*Colunista de Zero Hora, crônica postado em 28 de maio
de 2020.
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