Depoimento do jogador
“−
Seguidamente, nós íamos bater bola no Ferroviário, que estava se preparando
para ingressar na Primeira Divisão. Fiquei comprometido. Aí apareceu o Trololó
e disse que ia me levar para o colorado. Eu tinha 18 anos. Ele me pegou pela
mão. Quando me dei conta estava na sede do Internacional, que era na rua
Capitão Montanha, onde hoje está sede do Banco do Estado. Lembro como se fosse
hoje. O Rui Barbosa pegou uma ficha e me deu para assinar. Eu disse que
assinaria só por um ano.
−
Um ano? No Internacional, só por três anos.
Aí
eu assinei.
−
Quanto ganhou?
−
Nada. Assinei e me levaram para os Eucaliptos, para treinar. Eu tremia que dava
pena ao chegar no estádio. Mandaram o seu Alfredo, que era o roupeiro, me dar
as botinas. Ele olhou para mim e disse: “Esse vai dar bom”. Nunca mais esqueci
aquilo.
Calcei
as chuteiras só por alguns minutos. Eu pensei que ia jogar nos filhotes. Só
fiquei sabendo quando o seu Willy Teichmann, que era o presidente, me disse:
−
Tu vais jogar no segundo time. Pedi para morrer. Tinha gente famosa e eu,
magrinho, não teria vez. Apavorado, disse que ia embora. Ia voltar ao
Ferroviário.
No
dia do jogo, a turma da zona, com o Correio do Povo na mão apareceu na casa do
Tesourinha:
−
Tesoura, olha aqui. O Internacional e o Ferroviário estão te convidando para
jogar hoje, no segundo time. Que beleza, negrão!
Comecei
a tremer. E agora, jogar em qual? Só podia jogar no Internacional, onde eu
tinha assinado a ficha. Joguei na ponta-esquerda. Ganhamos de 6x1. Joguei tão
bem que o presidente me prometeu ajuda.
−
Quanto, Tesourinha?
− Um
litro de leite por dia! E o pior é que não me davam dinheiro. Me davam o leite
mesmo. Eu vivia bem porque trabalhava na Brigada, onde era armeiro. Fiquei três
anos sem ganhar nada mais do um litro de leite por dia.”
Do livro: “Meu Coração é Vermelho”,
de Ruy Carlos Ostermann.
Tesourinha, o mito colorado.
17
de junho de 1979, uma noite de sábado para domingo, é uma data triste para o
futebol gaúcho e brasileiro. Nesse dia, em Porto Alegre , falecia
Osmar Fortes Barcelos, mais conhecido por Tesourinha. Um dos maiores
pontas-direitas do futebol brasileiro encerrava a vida com apenas 57 anos,
vítima de um câncer no estômago, deixando, atrás de si, uma lenda futebolística
e um modelo a ser seguido. Mito do Internacional, carro-chefe do famoso Rolo
Compressor que foi hexacampeão gaúcho, de 1940 a 1945, Tesourinha
ganhou esse apelido pelo fato de seu pai integrar um famoso bloco carnavalesco
da capital, Os Tesouras, formado em sua maioria por negros, e que marcou época
nos anos 20, 30 e 40. Ele foi o primeiro jogador negro da história do Grêmio
Porto-alegrense, onde também jogou, dando fim a um período de discriminação
racial no hoje popular e democrático clube gaúcho.
Tesourinha
foi campeão sul-americano pela Seleção Brasileira nos anos quarenta, formando
ao lado de Heleno de Freitas, Zizinho, Jair e Ademir, e só não participou da
malograda Copa do Mundo de 1950 no Brasil, aquela do Maracanaço, por ter
estourado os meniscos quando jogava pelo Vasco, clube para o qual se transferiu
no início daquele ano, naquela que foi considerada a maior transação do futebol
brasileiro da época. Muitos consideram que sua ausência foi uma das causas da
perda do título para o Uruguai.
Nascido
em 3 de outubro de 1921, de família pobre, no bairro pobre da Ilhota, a
primeira grande favela de Porto Alegre, era filho de um motorista e de uma dona
de casa. Seu pai faleceu quando ele tinha apenas 12 anos. Começou a jogar
futebol em criança, em um dos times da famosa Liga da Canela Preta, uma
associação de jogadores de cor que se contrapunha ao racismo imperante no
esporte de então. Em 1940 Tesourinha já estava no Internacional de Porto
Alegre, onde ficaria por dez anos, formando o temível ataque colorado com
Vilalba, Russinho, Ruy e Carlitos. Em 1946, ao final do campeonato
sul-americano, atual Copa América, vencido pelo Brasil, Tesourinha foi
escolhido pela crítica “o maior ponteiro da América”. Mais tarde ganhou o
título de “Craque Melhoral”, distinção concedido por uma empresa de
medicamentos ao melhor jogador brasileiro do ano.
Tesourinha
foi comprado pelo Vasco no final de 1949, e o Vasco era o mais caro e vitorioso
time da época, a base da seleção brasileira. Porém o problema no joelho fez com
que pouco durasse em
São Januário. Em 1952, já com seus trinta anos, foi
contratado pelo Grêmio, Grêmio que no ano seguinte completaria 50 anos de
glórias. O garoto pobre da Ilhota voltava à terrinha.
Mas
Tesourinha era colorado de coração e foi no Inter onde jogou o fino. Em 1969,
quando da inauguração do Gigante da Beira-Rio, foi homenageado pela nação
colorada. Com lágrimas nos olhos, retirou, como merecido troféu, as redes das
goleiras do velho Estádio dos Eucaliptos, palco das suas grandes atuações pelo
Internacional. Defensor da classe esportiva e do futebol varzeano, onde se
formou, Osmar Fortes Barcelos foi laureado postumamente com a Copa Tesourinha
de Futebol Amador da Federação Gaúcha de Futebol e com um centro esportivo que
leva seu nome. Ele sempre dizia, com orgulho: “Vim da várzea, me torneio ídolo
e não posso negar meu apoio visando melhorar a estrutura desse futebol
varzeano, de onde saem os grandes craques. É lá onde tudo começa”.
Logo
após a sua morte, em uma crônica no velho Correio do Povo, o jornalista e
colorado Valter Galvani fala da honra de ter conhecido Tesourinha, o craque
fabuloso, e Osmar Fortes Barcelos, o homem afável de sorriso largo. Menino
vindo do interior, lembrando da primeira vez que o viu jogar, Galvani escreveu a
24 de junho de 1979 a
crônica “Tesoura, um Certo Sorriso”: “Eu diria que o vi em campo, naquela
longínqua tarde de 1944, com o seu largo sorriso. Tesourinha foi um herói a seu
modo, um herói modesto, simples e calmo, capaz de levar as plateias até o
delírio. Nunca esqueci suas jogadas, mas jamais esquecerei o seu sorriso de
bondade.”
Pesquisa e Texto: Vitor Minas
(No jornal “O Felizardo”,
do Bairro Jardim Botânico de Porto Alegre)
do Bairro Jardim Botânico de Porto Alegre)
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