Por Anna Bheatriz
Nunes
Viver
é estar sujeito ao risco. Da doença. Da falência. Da bala perdida. Passa-se
muito tempo tentando a segurança para não arriscar o corpo. No entanto, o maior
risco é a alma perdida. Solta no espaço. Sem voz. Não existe corpo sem alma.
Mas na maior parte do tempo é ignorada. Fica escondida no calabouço corpóreo,
sem alimento – a poesia.
Cada
dia de uma vida não poética é uma perda. De pulsação. A languidez toma conta da
vivacidade inerente a qualquer ser. O saltar torna-se arrastar-se. A poesia não
é dos poetas e para os poetas. Estes apenas a assumem e colocam a alma à frente
do corpo. Mas todo humano pode ser. O que já é. Isso é poesia. Constituição
íntima e ao mesmo tempo coletiva.
Poderíamos
compartilhar naturalmente esse principal alimento em vez da fome, que se
sobrepõe diariamente em forma de vazio interno. E não devemos cair no mito de
que sentir a poesia é ser aluado. Os que a sentem trabalham, pegam metrô. Mas
não se permitem tragar-se pela onda repentina e destrutiva da rotina. Entrar em
um ônibus todos os dias pode ser uma nova experiência se os olhos poéticos
estiverem despertos. Ganha-se a presença, a percepção. Em um mundo de intensos
estímulos visuais, auditivos e olfativos, observar é um ato heroico. Prestar
atenção às palavras internas e alheias. Poesia é um exercício. É optar pelo
preenchimento em vez da fuga.
Eu,
particularmente, busco ter um tempo diário para ver a poesia. Para mim, ela se
manifesta enquanto ando nas ruas e meu olhar se cruza com o de outra pessoa
desconhecida. Gosto de ir à praça comprar pipoca, é algo que me remete à
infância. Porém faço apenas como consumidora na maior parte do tempo. Em uma
das minhas saídas poéticas, comecei a conversar com a senhora com quem compro
pipoca. Agora sei seu nome, sua história e captei muitas lições. Ela era um
elemento poético encoberto pela cortina desumana da rotina. E quantos outros
existem? Na minha vida. Na sua.
Viver
em estado poético é abrir-se para a surpresa. Proponho um simples exercício.
Quando sair de casa pela primeira vez ao dia, deixe seus olhos dançarem até
encontrarem algo que lhes interesse. Então, fixe a atenção e deixe as cortinas
da monotonia se abrirem. Não, não existem dados estatísticos que confirmem a
eficácia dos efeitos do exercício. O que preenche não é estudado. É
experienciado. Por todas as células do corpo que se empenham em observar. E liberar os
cursos d’água presos dentro do corpo. Até que os riscos de uma vida não poética
desapareçam.
(Do blog eusemfronteiras)
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