quarta-feira, 13 de maio de 2020

Os riscos de uma vida não poética

Por Anna Bheatriz Nunes


Viver é estar sujeito ao risco. Da doença. Da falência. Da bala perdida. Passa-se muito tempo tentando a segurança para não arriscar o corpo. No entanto, o maior risco é a alma perdida. Solta no espaço. Sem voz. Não existe corpo sem alma. Mas na maior parte do tempo é ignorada. Fica escondida no calabouço corpóreo, sem alimento – a poesia.

Cada dia de uma vida não poética é uma perda. De pulsação. A languidez toma conta da vivacidade inerente a qualquer ser. O saltar torna-se arrastar-se. A poesia não é dos poetas e para os poetas. Estes apenas a assumem e colocam a alma à frente do corpo. Mas todo humano pode ser. O que já é. Isso é poesia. Constituição íntima e ao mesmo tempo coletiva.

Poderíamos compartilhar naturalmente esse principal alimento em vez da fome, que se sobrepõe diariamente em forma de vazio interno. E não devemos cair no mito de que sentir a poesia é ser aluado. Os que a sentem trabalham, pegam metrô. Mas não se permitem tragar-se pela onda repentina e destrutiva da rotina. Entrar em um ônibus todos os dias pode ser uma nova experiência se os olhos poéticos estiverem despertos. Ganha-se a presença, a percepção. Em um mundo de intensos estímulos visuais, auditivos e olfativos, observar é um ato heroico. Prestar atenção às palavras internas e alheias. Poesia é um exercício. É optar pelo preenchimento em vez da fuga.

Eu, particularmente, busco ter um tempo diário para ver a poesia. Para mim, ela se manifesta enquanto ando nas ruas e meu olhar se cruza com o de outra pessoa desconhecida. Gosto de ir à praça comprar pipoca, é algo que me remete à infância. Porém faço apenas como consumidora na maior parte do tempo. Em uma das minhas saídas poéticas, comecei a conversar com a senhora com quem compro pipoca. Agora sei seu nome, sua história e captei muitas lições. Ela era um elemento poético encoberto pela cortina desumana da rotina. E quantos outros existem? Na minha vida. Na sua.

Viver em estado poético é abrir-se para a surpresa. Proponho um simples exercício. Quando sair de casa pela primeira vez ao dia, deixe seus olhos dançarem até encontrarem algo que lhes interesse. Então, fixe a atenção e deixe as cortinas da monotonia se abrirem. Não, não existem dados estatísticos que confirmem a eficácia dos efeitos do exercício. O que preenche não é estudado. É experienciado. Por todas as células do corpo que se empenham em observar. E liberar os cursos d’água presos dentro do corpo. Até que os riscos de uma vida não poética desapareçam.


(Do blog eusemfronteiras)

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