segunda-feira, 18 de maio de 2020

O marinheiro Marcílio Dias

Por Fátima Fabiana


A história de hoje não possui um retrato, Pulcena, podemos apenas imaginar como eram suas feições!

Em 1804, um casal liberto, que vinha da costa africana, festejava o nascimento de sua bebezinha. Levaram sua maior preciosidade à Igreja Nossa Senhora das Mercês (Nossa Senhora das Necessidades), na localidade de Povo Novo, no município de Rio Grande.

Um ano antes, na mesma pia batismal, Antônio de Souza Netto recebia o sagrado sacramento. Manoel Ventura e Joana Dias apresentavam a Deus a pequenina Polocena Dias, que com o tempo passou a ser chamada de Pulcena Dias. Cresceu no campo com pouco ou nenhum luxo...

No seu coração havia um sonho, o de conhecer um homem bom e se casar para ter sua própria família. Com seus vinte e alguns anos conheceu Francisco Joaquim e ele ficou encantado com a esbelta; seu rosto era redondo, com olhos negros cativantes emoldurados por cabelos volumosos. Seu sorriso franco conquistou o amor de Joaquim. Casaram-se e tiveram três filhas. Pulcena não sabia ler e nem escrever, mas sabia trabalhar e trabalhava com amor e dedicação. Limpava, lavava e cozinhava. Cesária, Luiza e Joaquina eram suas maiores alegrias, mas infelizmente seu esposo falece.

A luta pela vida e a necessidade de criar as meninas a fez resistir. Não faltava trabalho. Nunca souberam o que era usar roupas novas, e, no entanto, sempre andavam limpas, esbanjando capricho.

Um dia, o sotaque português do marinheiro Manuel Fagundes lhe aqueceu o coração! Foi impossível não se apaixonar. Ela lhe deu um varão, Marcílio*, que era tudo para a mãe e muito mimoso! O tempo passou e seu menino, agora com 17 anos, tornou-se um teimoso e algumas vezes ela teve que utilizar o chinelo… Alguém chega gritando: “Dona Pulcena, Dona Pulcena, é o Marcílio!” Ela saiu desesperada. Marcílio havia se envolvido em uma briga e se esvaía em sangue. Marcílio não levava desaforo para casa. Foi até à delegacia e registrou o ocorrido.

Em 1855 ela foi presa, acusada de introduzir moedas falsas. Ela disse aos filhos que era inocente. Chamou o padrinho do menino e pediu que o levasse para a Marinha. Naquela época, a Marinha funcionava como um castigo, uma escola, um lugar que “recrutava” crianças pobres para um local de baixos soldos e de muitas chibatas, porém para os pais era a única chance de uma vida “melhor”, viajar e quem sabe, aprender a ler! Foi difícil, mas era um mal necessário para seu mocito aprender a ter responsabilidades. Durante toda a vida, Pulcena dizia ao filho para ser obediente e mostrar ao mundo que ele tinha valor. Ele era filho de um homem do mar. Seu pai atravessou o mar e ele podia atravessar também! Ser pobre não é defeito! Defeito é ser preguiçoso e covarde!

Em 1855, o jovem ingressa na Marinha. Em pouco tempo a mãe é absolvida e retoma sua rotina. Sente muita saudade de seu filho amado. Chega a notícia de que ele esteve doente... Fica desesperada! Precisa ver sua cria! Pulcena recorre a todas as senhoras para quem sempre lavou, passou e cozinhou, para que a ajudem a trazer seu pequeno. Ela suplicou tanto, que em 1857 desembarca em Rio Grande um mulato marinheiro corpulento, alto, garboso. A mãe e as irmãs não acreditam que era o Marcílio… Choraram muito de felicidade… Dias felizes! Ela não se cansava de falar do seu orgulho! Dizia a todos: “Olhem o Marcílio, é o homem mais lindo da Marinha do Imperador”. Mas a licença expirou… Para a Marinha ele voltou... A mãe o beijou e disse que sempre estaria com ele, que amor de mãe vai aonde os olhos não enxergam.

Em 1864, Marcílio se destacou em Paysandu, com a bandeira do Brasil, emocionado, gritava “Vitória!”. Na ímpia Guerra do Paraguai, em 1865, Pulcena já estava em seu descanso eterno e o jovem marinheiro gaúcho, cercado por 4 inimigos, não se entrega. Algo em seu peito gritava: “Não está morto aquele que peleia”. E ele peleou, peleou como sua mãe e sua ancestralidade e com seu sabre matou dois, foi atingido, o braço decepado... Não desistia e comovia até o comandante Barroso. Riachuelo entra para a história.

Marcílio não resiste! Seu túmulo são as águas doces do Rio Paraná. Seu nome está gravado de Norte a Sul do Brasil. Os relatos de seus contemporâneos ajudaram a montar o seu retrato. No centro de minha cidade, a Rainha da Fronteira, uma das ruas tem o nome deste filho de lavadeira. Heróis são homens que resistem e insistem. Atrás de um filho herói existiu uma mãe heroína! Eu sei que muitos heróis nasceram em berços humildes e o maior de todos os seres humanos nasceu em uma manjedoura... Educação é a única solução para esta Nação. Hoje, o maior hospital da Marinha, na Cidade Maravilhosa, tem o nome deste gaúcho. O neto dos africanos fez história!

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O Imperial Marinheiro de Primeira Classe Marcílio Dias, era filho de Manuel Fagundes e de Dona Pulcena Dias, nasceu no Rio Grande do Sul, em 1838.

Ingressou na Marinha como Grumete aos 17 anos de idade, tendo sentado praça no Corpo de Imperiais Marinheiros em 5 de agosto de 1855.

Ao verificar praça no Imperial Corpo de Marinheiros, a fim de receber a instrução militar obrigatória, Marcilio Dias teve como seu primeiro comandante o então Capitão-de-Mar-e-Guerra Francisco Manuel Barroso da Silva, o futuro Comandante da nossa esquadra vitoriosa em Riachuelo.

Tendo cursado a Escola Prática de Artilharia, foi promovido a Marinheiro de Segunda Classe. Só podiam matricular-se na escola acima as praças que soubessem, pelo menos, ler e escrever. A sua sede era a bordo da Fragata Constituição. Depois realizou viagem de instrução para pratica de artilharia a bordo da Corveta Imperial Marinheiro. Dessa turma, composta de 38 alunos, somente 15 foram habilitados nos exames finais, sendo Marcilio Dias um desses 15. Sempre fora, uma praça distinta. Depreende-se daí, que Marcilio Dias não era, como muitos supõem analfabeto; se a Escola, cujo fim principal era o de “criar artilheiros com as necessárias habilitações para poderem desempenhar a bordo dos navios da Armada os importantes cargos de Chefes de Peça, Fiéis de Artilharia, Carregadores e Escoteiros, e a 11 de junho de 1865 Marcilio Dias era Chefe de Rodízio Raiado, conclui-se que o seu preparo instrutivo era de nível bem elevado.

Aprovado nos exames, Marcilio Dias embarcou na Canhoneira a Vapor Parnahyba, em 1863. Estava esse navio em aprestos de viagem para o Rio da Prata, era seu Comandante o 1º Tenente Aurélio Garcindo Fernandes de Sá.

Tomou parte ativa na tomada de Payssandú e de Corrientes. A 11 de junho de 1885, trava-se a memorável Batalha de Riachuelo.

A Parnahyba lançou-se sobre um Vapor inimigo pondo-o a pique. É porem, abordada pelos outros dois. A luta foi heróica. “Cada oficial, cada marinheiro, cada soldado, cumpriu o seu dever de verdadeiro brasileiro.” A nossa bandeira, que chegou a ser arriada por um oficial paraguaio, foi defendida até a morte pelo Capitão Pedro Afonso Ferreira e pelo Guarda-Marinha João Guilherme Greenhaigh. Quase toda a guarnição de ré foi acutilada.

Só com a aproximação da Fragata Amazonas, que viera em socorro da Parnahyba, é que os paraguaios abandonaram a nossa Canhoneira. O combate durara mais de uma hora. O Comandante Garcindo de Sã, tendo em vista a gravidade da situação, já ordenara ao Escrivão de Segunda Classe José de Correia da Silva que lançasse fogo ao paiol de pólvora.

Os paraguaios percebendo que vinham em socorro da Parnahyba, a Fragata Amazonas, o Vapor Belmonte e a Canhoneira Mearim, precipitaram-se ao rio, procurando ganhar a margem do Chaco.

Depois disso a nossa bandeira foi de novo içada.

O Comandante Garcindo de Sã, em parte que dirigiu ao Comandante-Chefe da Esquadra brasileira, assim se expressou sobre Marcilio Dias: “O Imperial-Marinheiro de Primeira Classe Marcilio Dias, que tanto se distinguira nos ataques de Paissandu, imortalizou-se ainda nesse dia. Chefe do rodízio raiado, abandonou-o, somente, quando fomos abordados, para sustentar braço a braço a luta de sabre com quatro paraguaios.

“Conseguiu matar dois, mas teve de sucumbir aos golpes dos outros. Seu corpo crivado de horríveis cutiladas, foi por nós piedosamente recolhido, e só exalou o último suspiro ontem (12 de junho), às duas horas da tarde, havendo-se-lhe prestado os socorros que me tornara digna a praça mais distinta da Parnahyba. Hoje (13 de junho), pelas 10 horas da manhã, foi sepultado, com rigorosa formalidade, no rio Paraná, por não termos embarcação própria para conduzir seu cadáver à terra.

Andréa, Júlio. A Marinha Brasileira: florões de glórias e de epopeias memoráveis. Rio de Janeiro, SDGM, 1955.

NOMAR − Noticias da Marinha, Rio de Janeiro, SRPM, n.º 502, abr/mai/jun. 1985; n.º 686, jun. 1999.


Combate Naval do Riachuelo – de Victor Meirelles*

* A pintura acima, hoje reside no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.




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