Paulo Mendes*
Era
um homem jovem ainda, 50 e poucos, por aí, mantinha os braços fortes com marcas
de quebraduras, vivera sempre naquela lida bruta de estância em estância. Era uma
segunda-feira, madrugaram para principiar o serviço mais cedo, o capataz
mandara castrar e marcar um lote de novilhos desmamados. Então, viu o jaguané
correr rente à mangueira. Reboleou o laço de armada curta com duas rodilhas
apenas, e lançou o tiro certeiro nas mãos, o bicho trocou de ponta e os
companheiros chegaram para apertar, um botou o sovéu nas patas, outro torceu a
cabeça. Ele ficou ali, recolhendo o laço de 12 braças feitio do finado Artidor,
lá do Cerrito. Olfateando esterco olhou para o nascente, viu a bola de fogo que
clareava o dia. Foi seu último pealo, o derradeiro tombo que dava num pavena.
Em seguida, sentiu uma patada no peito, as coisas ao seu redor começaram a rodar
e caiu, sujando a bombacha preta de favos com o verde da bosta do novilho.
“Merda”, gritou Tonho Maidana, enquanto outros dois peões levavam o laçador até
o galpão grande.
Quando
o patrão chegou, levou Gilberto Sereno Ichuparry de La Cruz , o Gibão, para o
Hospital da Vila Rica. Fizeram exames, constataram o rompimento de uma veia
perto do coração e marcaram cirurgia. Começavam as horas finais da vida do
campeiro que fazia bonito numa marcação, num rodeio de coxilha, no preparo de
um assado em dia de festa, do dançador de xotes em bailongos beira de estrada,
do exímio castrador, do domador respeitado, do pelador de adaga, do consagrado
e disputado peão por todos os estancieiros do antigo Durasnal. Na véspera da
cirurgia, sonhou com a infância no povoado de Masoller, no Uruguai. A mãe
fugira dias antes da batalha entre Blancos e Colorados, aquela em que Aparício Saraiva
foi ferido de morte. O avô, Gilberto Ichuparry, era federalista e morreu
lutando pelo chefe, que peleava com um pala branco nos ombros, de peito aberto,
de espada na mão, destemido, à frente das tropas e, por isso, acabou ferido por
um disparo de Mauser dos colorados. Os blancos lutavam com espadas, adagas e
lanças. A mãe de Gibão, Firmina Ichuparry, a dona Mina, sempre falava dessas
batalhas e das peripécias dos irmãos Aparício e Gumercindo.
Foi
no dia 2 de novembro de um certo ano dos 1900 que Gibão se despediu deste mundo.
Havia nascido num Domingo de Páscoa, num ranchinho perto da Cascata do Ivaí,
lugar pelo qual sua mãe se apaixonara e vivera com outro peleador uruguaio,
Juan Ignácio de La Cruz. Quando
o pequeno Giba nasceu, o pai se mandou pra Vichadero e nunca mais voltou. Ou
era Santa Clara de Olimar? Bueno, agora não importa mais nada, está tudo
acabado. Mas Dona Mina o criou forte e trabalhador.
Contam
que Gibão nunca se casou, mas teve uma filha, fruto de um relacionamento fugaz
que teve numa viagem a São Borja. Antes de morrer, pediu que a chamassem, sabia
o nome e que trabalhava numa cooperativa. Quando Angélica chegou, finalmente
conheceu o pai. Ele mandara muitas cartas, mas ela nunca o perdoara. O pequeno
Gilberto, de 2 anos, era a cara do avô, que morrera fazendo o gostava, peleando
a vida numa mangueira de pedra.
******
P.S.
Quem me contou a história foi a própria Angélica. Ela se formou em Jornalismo
na UFSM e atualmente tem um blog de notícias numa pequena cidade do interior.
*(Da coluna Campereada no Correio do Povo, maio de
2020)
Glossário
Jaguané: Diz-se de animal vacum
que tem o fio do lombo e barriga brancos.
Mangueira: Grande curral de gado,
de pedra ou de madeira, junto ao edifício da estância.
Reboleou: Deu movimento de
rotação ao laço para arremessá-lo contra um animal que se quer prender.
Sovéu: Laço grosseiro e forte
para pegar touros.
Pealo: Laço que se atira ao boi
ou outro animal, quando este vai em disparada, prendendo-o pelas partas dianteiras.
Pavena: Valente, brigador.
Bailongo: festa em que há danças.
Peleador: Brigão, bom de briga.
Adaga: Faca comprida, e fina tipo
punhal com dois gumes.
Peão: Trabalhador de estância.
Pelear: Lutar, combater.
Durasnal: Pomar de pessegueiros.
Mauser: Pistola semiautomática
alemã.
Palavras consultadas
no “Dicionário Gaúcho”,
de Alberto Juvenal de
Oliveira.
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