Lembranças da Copa
A nossa libertação
Luciano Poter
A
arquibancada da noite fria de agosto de 2006 foi o meu lugar nesse prélio
(...). Lembro das lágrimas, ajoelhado, abraçando outros torcedores também chorões
depois do fim em 2 a
2. Mas o problema é tentar enxergar esse Inter e São Paulo como uma partida de
futebol. Essa é a casca apenas. Para os milhões de colorados espalhados pelo
planeta, foi uma epifania de que não vivíamos para sofrer. Que era possível
nesse esporte filho da mãe também ser feliz.
Foram
anos amargurando resultados malditos e um rival que emendava duas décadas de
sucessos. “Os humilhados foram exaltados”. Futebol serve para arrebentar com
sinais, destruir com marasmos e tocar flauta naqueles sacanas que outrora
estavam por cima da carne seca. Era a nossa vez. Aguentem!
Fernandão
não apenas levantou a mais linda das taças. O capitão colorado avisou aos
Deuses do esporte que um gigante havia acordado, saído da hibernação. Naquela
noite, estraçalhamos com o complexo de vira-latas. Naquela noite, não dormimos.
Não era apenas uma Libertadores. Era a nossa libertação.
(Em
Zero Hora , maio de 2020)
Eu também estava lá...
Agosto
de 2006, final da Copa Libertadores, Internacional, de Porto Alegre, e São
Paulo, da capital do estado paulista. No primeiro jogo, o Inter tinha ganhado
de 2x1. Agora, bastava um empate para ser campeão. O Inter teria, também, a
chance de ganhar com qualquer escore. Só não poderia perder com mais de um gol
contra. Se
perdesse de 2x1, teria prorrogação e pênalti, mas se perdesse, digamos por 3x2,
daria o São Paulo, pois o Inter teria marcado dois gols fora e sofrido três em
casa.
Vou
sozinho ao estádio, estou levemente resfriado. Noite fria e chuvosa, fila longa
ao redor do Beira-Rio. A minha proteção é uma capa de nylon feita para
iatistas, nela não passa um pingo de chuva. Puxo papo com alguém que está à
minha frente na fila. Digo a ele: “Esta pode ser a noite mais feliz da minha
vida... ou a mais triste”. O cara que saber por quê. Digo a ele: “numa partida,
como essa que vamos assistir daqui a pouco, as chance de vitória ou derrota é
de 50% para cada time. Não dá para ter certeza absoluta de sucesso”. O cara
emudece e cai na real.
Já
estou dentro do estádio, ao lado da social, acima da entrada, bem na linha de
escanteio da goleira que fica para o Gigantinho.
O
Beira-Rio recebe um público acima da sua capacidade total. Ninguém está sentado, não há o mínimo espaço para mais ninguém, há
uma tensão terrível no ar. Já quase está começando o jogo, quando noto um jovem negro
com seu filho de uns cinco anos, na mureta que dá para a coreia, setor quase
rente ao campo, onde torcedores torcem em pé. Ele está com seu filho nos ombros, rosto
quase rente ao concreto da mureta, deixando que pelo menos seu filho olhasse
o jogo. Grito em sua direção, todos, ao seu redor, olham pra mim, aponto para
quem estou gritando, então, ele olha em minha direção. Aponto que ao meu lado
há lugares, espremidos, mas há lugares para ele e seu garoto. Ele sobe com seu
filho, com alguma dificuldade os degraus, apertamos as mãos e vamos ao jogo.
O
Internacional marca o seu primeiro gol, por Fernandão, bem na minha frente,
delírio total. O São Paulo empata no começo do segundo tempo. Tinga marca o
segundo gol, e, irresponsavelmente, pois já tinha cartão amarelo, tira a camisa
e mostra uma camiseta branca por baixo, com uma inscrição religiosa. É expulso
de campo pelo juiz argentino que apitava a partida. Agora, o Inter com grande
desvantagem!
O
Inter, apesar de estar vencendo por 2x1, tem um jogador a menos. Aos 39
minutos, quase no final do jogo, o São Paulo empata: 2x2. Faltam 6 minutos e, quem sabe, mais a
prorrogação, num total de 10 minutos que serão os mais horripilantes minutos da
minha vida.
Todos,
a minha volta, estão com as mãos unidas, uns choram de medo, os dedos estão
entrelaçados numa prece coletiva. Cada ataque do São Paulo é um filme de
terror. O banco do São Paulo está quase na minha frente. Murici Ramalho, o
treinador, coloca mais atacantes, está alucinado na beira do gramado, mandando
seu time atacar cada vez mais. Ninguém olha mais o jogo, os olhos só estão
voltados para o árbitro. Eu estou agarrado na minha pouca fé. Oro para Nossa
Senhora Aparecida e à Santa Rita de Cássia, santas que possuem igrejas no meu
bairro na Zona Sul.
Nisso,
parece que depois de uma eternidade, o juiz encerra a partida. Saio imediatamente
do estádio. Não vejo a entrega da taça, quero sair o mais rápido possível daquela agonia. Pego meu carro, paro defronte a Igreja de Nossa Senhora Aparecida,
em Ipanema, para fazer as minhas preces de agradecimento.
Vou,
depois, à Igreja de Santa Rita de Cássia, no Guarujá. Saio do carro, ajoelho na
calçada, de olho em algum assaltante, e rezo com muito fervor em agradecimento.
Sim,
poderia ter sido a noite mais triste da minha vida, mas acabou sendo a noite
mais feliz e inesquecível das que eu já vivi nesta Terra abençoada por Deus!
Nilo da Silva Moraes
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