domingo, 11 de abril de 2021

Uma outra história do Sul

 Queima de estoque 

Paulo Mendes

Enquanto mateio, vou acompanhando o noticiário que se repete sobre o horror da pandemia. Em meio aos recordes negativos que se sucedem e às possibilidades de novas vacinas, me deparo com a pressão do comércio por espaço maior para a abertura das portas e tradicionais promoções de “queima de estoque” para atrair a clientela nestes tempos difíceis. Então me vem à cabeça aquele causo antigo da Vila Rica, quando o Pitico e Malacara se aventuraram a trabalhar na cidade, abandonando de vez a vida no campo, depois de uma malsucedida tentativa de criação de coelhos, quando tiveram prejuízos elevados com a reprodução rápida e desordenada dos bichinhos, somada à falta de compradores. 

Foi assim: depois de perderem suas parcas economias com a falência da empresa rural montada para a produzir coelhos, Pitico e o sócio decidiram que não iriam voltar a trabalhar nas fazendas e granjas. Era o momento de buscar alguma atividade urbana e, como eram exímios vendedores, prática que aprenderam na criação de coelhos, entenderam que as lojas da Vila Rica seriam um destino natural. Foi então que se prepararam, banho tomado no capricho, corte de barba e cabelo, roupa nova e “nos trinks”. E foram visitando os gerentes, se apresentando, explicando as intenções, a experiência em vendas, mas recebiam sempre a resposta que o momento era de crise (sempre ela). Começaram a busca por emprego numa segunda, porém na sexta é que acharam vaga quase na mesma hora. O Malacara conseguiu trabalho em um posto de gasolina, e o Pitico na “Casa do Povo”, que vendia móveis para residências. O dono conhecera o pai de Pitico quando serviram o Exército em São Gabriel e isso facilitou as coisas. 

O Pitico se mostrou um baita vendedor, ganhando a confiança do chefe e do proprietário. Foi aprendendo a manha do trabalho e em poucos meses foi promovido a encarregado de setor. Nas férias do gerente, assumia o cargo. Era uma alegria só em sua nova vida de empregado no comércio, com as vantagens da carteira assinada, décimo terceiro, férias, contribuição ao INPS e fundo de garantia. Até que ocorreu uma tragédia. O empresário fez uma viagem a Porto Alegre e, motivado pelas promoções que viu na capital, decidiu implantar uma delas em sua loja. Chamou o Pitico e disse: “Na segunda-feira vamos iniciar a queima do estoque”. O funcionário arregalou os olhos e respondeu: “Sério, patrão, vamos queimar tudo ou só as miudezas?”. “Para começar, os banquinhos, as mesas mais antigas, colchões de solteiro.” Antes de o dono sair, ainda confirmou a “queima”. “Sim, claro, em Porto Alegre é só o que se vê, torra-torra, queima de estoque, tu precisas te atualizar.” 

Assim, naquela segunda-feira, a Vila Rica presenciou a primeira “queima de estoque” de sua história. Pitico, meio a contragosto, reuniu os móveis e lascou fogo, no pátio atrás da loja. Quando a fumaça subiu, a vizinhança chamou o dono que chegou esbaforido, mas nada mais podia fazer diante das cinzas. “O senhor mesmo que mandou”, alegou o Pitico. Perdeu o emprego, mas dias depois o proprietário, arrependido por não ter-lhe explicado direito a dinâmica da promoção, o recontratou. Dizem que os ladinos, quando queriam provocá-lo, perguntavam: “Quando será a nova promoção, seu Pitico?”. 

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(Na coluna Campereada, do Correio do Povo, abril de 2021)



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