domingo, 4 de abril de 2021

Uma Fábula fabulosa de Millôr Fernandes

 A decadência dos costumes

Kismet Assan, o grande advogado, décimo oitavo filho do poderoso Kismet Ibnen Assan, foi chegando em casa, tarde da noite, cansado do trabalho, e descobriu, pelo odor, que havia um ladrão em seu quarto de dormir (em árabe: camara da letto). Pegou um bacamarte e avançou, passo a passo, silenciosamente, em todas as direções ao mesmo tempo. Mas o ladrão, mais silencioso do que ele, percebeu o seu silêncio, e saltou pela janela de dez metros de altura, na coragem do medo. Ao fugir, porém, deixou sobre a cama uma sacola, com dois candelabros de prata que havia roubado de alguma outra casa. 

Com muita advocacia Kismet pensou com o pensamento dialético próprio da profissão: “Bem, tomarei isto como honorários pela ação de fuga que impus ao malfeitor'”. E, com olhar cúpido de conhecedor, pelo resto da noite ficou contemplando as duas belas peças. 

Na noite seguinte, na noite imediatamente seguinte a essa, e em muitas noites consequentes, umas atrás da outras, Kismet chegava em casa até mais cedo, na esperança de encontrar de novo o ladrão ou outro ladrão com igual butim. Mas isso não aconteceu nunca mais e, oitenta e cinco dias depois, Kismet concluiu, melancólico: “Realmente, não sei onde este país vai parar”. 

Moral: 

Invectiva o mal, mas cobra o bem. 

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