sexta-feira, 2 de abril de 2021

Histórias de Malba Tahan

 (Júlio César de Mello e Souza)

O diamante e mendigo 

Conta-se que um schnorrer* chegou, certa vez, a pequena cidade ao anoitecer duma sexta-feira, e inteirou-se de que o único lar onde não se alojava um pobre, aos sábados, era o do usurário do lugar. 

O schnorrer bateu, sem-cerimônia, e insistiu em falar, em caráter muito confidencial, com o dono da casa. 

- Não vim pedir esmolas - afirmava ladinamente, em voz baixa. – É assunto de negócio. E de grande negócio. 

Introduzido no escritório do usurário, o esfarrapado mendigo fechou cautelosamente a porta e disse, simulando grande mistério: 

- Quanto daríeis por um diamante límpido e perfeito, em forma de rosa e do tamanho de uma azeitona? 

A cobiça flamejou no coração do avarento. Interessava-o a compra da pedra. Achou, porém, preferível recalcar o seu interesse, pois naquele momento qualquer precipitação de sua parte faria subir o preço da mercadoria. Era preciso, antes de tudo, agradar o vendedor; cativá-lo com finuras e obséquios. E o avarento disse ao mendicante, com ar luminoso e afável, a voz impregnada da mais familiar cordialidade: 

- Bem vejo que estás cansado. A tua jornada foi longa. O momento não é oportuno para transações. Convido-te para o sábado. Ficarás em minha companhia. Depois conversaremos com mais vagar. 

Ao escurecer, terminado o sábado, voltou o usurário a falar com o schnorrer e mostrou-se, finalmente, empolgado pelo desejo de ver a pedra. O mendigo encolheu os ombros num gesto de indolência e cinismo: 

- Acaso eu vos disse que tinha um diamante? Perguntei quanto me pagaríeis por um diamante límpido e perfeito, em forma de rosa e do tamanho de uma azeitona. Quero estar informado com toda segurança do preço, pois pode suceder que encontre uma gema com tais predicados, e seria feliz em vendê-la dentro de uma justa avaliação. 

*Schnorrer é um termo iídiche que significa mendigo. 

Mãos salvadoras 

Certa senhora, dotada, embora, de grande formosura, tinha um defeito. Possuía as mãos enrugadas, quase disformes. Durante muito tempo sua filha, menina viva e sagaz, com a delicada intuição da infância, não tocara no assunto. Por fim a curiosidade pôde mais do que ela, levando-a a esta confissão:

- Minha mãe, eu gosto muito do seu lindo rosto, e gosto muito de seus lindos olhos, e da sua testa e do seu pescoço, mas não posso gostar das suas mãos. São tão feias! 

Então a carinhosa mãe contou-lhe o seguinte: 

- Uma noite, quando você era ainda muito pequena e estava dormindo em seu bercinho de rendas e fitas, ouviu-se por toda a casa, o alarme de incêndio. Subi precipitadamente as escadas e encontrei em chamas o quarto onde você sonhava com os anjinhos. Quis Deus levar-me até ao seu berço e eu a salvei. Desde então as minhas mãos ficaram assim. 

A adorável criança quedou silenciosa por alguns instantes. Depois disse: 

- Ó mamãezinha, eu ainda gosto do seu rosto, de sua testa e do seu pescoço, e dos seus olhos e dos seus cabelos, mas agora gosto das suas mãos mais do que tudo. 

Reparai agora, meus amigos, nas mãos divinas de Jesus - mãos remidoras e compassivas porque foram no infamante lenho da maldita cruz traspassadas impiedosamente por causa dos pecados de todos nós - distanciados do redil de Deus... 

Palavras de um sábio 

Tendo Chevreuil, célebre químico, pronunciado durante uma aula o nome de Deus, foi interpelado no momento por um de seus discípulos. 

- Mestre - perguntou o jovem, petulante e audacioso - acreditas em Deus? Já o viste? 

O sábio respondeu: 

- Sim, meu caro amigo, já O vi, não em si mesmo, que Ele é puro espírito, mas em Suas obras. Vi Sua onipotência na grandeza e no rápido movimento dos astros; vi Sua inteligência e Sua infinita sabedoria na ordem do Universo; vi a Sua bondade infinita nos admiráveis benefícios que Ele me dispensou.

- E tu, meu jovem, não conseguiste ver nada disso? Não vês o pintor divino no estupendo quadro da criação? Não vês o mecânico celeste nesta bela máquina do mundo? Não vês o artífice em sua obra? 

- Moço, lamento a tua ignorância: dela unicamente resulta a cegueira em que vives! Procura aprender para sempre a sublime verdade! 

Deus é espírito. Por isso O não podemos perceber pelos nossos sentidos, porque não tem corpo, nem figura, nem cor, nem algum dos atributos que se reconhecem nas coisas materiais. Criador de todas as coisas, Deus não foi criado por nenhum outro ser. Não teve, pois, princípio, nem há de ter fim. É eterno, isto é, existiu sempre e sempre há de existir.          

Superior a todos os entes criados por Ele, as Suas perfeições são infinitas. É onipotente, isto é, pode tudo; é imutável, isto é, não pode ter mudança nos Seus atributos; é criador de todas as coisas, e nenhuma das coisas criadas tem o poder de criar outros entes Seus subordinados; é infinitamente bom; é senhor de tudo, tudo governa no mundo; a Sua misericordiosa providencia a tudo acode e tudo regula segundo as leis da Sua eterna e infinita sabedoria. 

Pretender encerrar Deus nos limites de nossa compreensão é o mesmo que pretender encerrar todo o oceano dentro de um pequenino dedal. 

Somente Deus - ensinava Santo Agostinho - sacia os nossos desejos, porque Ele é a imensidade. Sempre os saciará, porque Ele é a eternidade. 

O ouro e a vaidade 

Conta-nos Santo Ambrósio que Dionísio, o tirano, ao entrar, certa vez, num templo pagão viu uma estátua de Júpiter que ostentava uma grande capa de ouro. 

Mandou que arrancassem o áureo adorno, justificando por esta forma a sua resolução: 

- Não serve esta capa! Júpiter deve detestá-la! É muito fria no inverno e muito espessa no verão. 

E ao avistar uma outra estátua de Esculápio com barbas também de ouro, exclamou: 

- Como pode Esculápio ser assim barbado quando Apolo, seu pai, nem buço tinha! 

E ordenou que retirassem as custosas barbas de Esculápio. 

É bem certo que Dionísio, que assim mostrava tão grande desamor aos seus deuses, os teria desmembrado do mesmo modo como tirou de um a capa e do outro as barbas. Isto faria o tirano - se as estátuas tivessem braços e pernas de metal precioso. 

Era Dionísio, na vida pecaminosa que arrastava, tentado pelo ouro, pelas riquezas e pelas vaidades do mundo. 

Vaidade é buscar riquezas perecedoras e nelas pôr sua confiança. Vaidade é desejar honras e comprazer-se na elevação. Vaidade é seguir as paixões impuras e ambicionar o que, depois, deve ser severamente punido. Vaidade é aspirar a longa vida, sem cuidar de que seja boa. É vaidade também atender somente à vida presente, sem prever as coisas futuras. Vaidade é amar o que tão depressa passa, e não buscar pressuroso a felicidade que sempre dura. 

Faze, pois, por desviar de teu coração o amor das coisas visíveis e volta-te para as invisíveis; pois os que seguem os atrativos do mundo mancham a consciência e perdem a graça de Deus. 

(Do livro “Lendas do Céu e da Terra”)

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