quarta-feira, 19 de abril de 2023

Deus nos livre

Luis Fernando Veríssimo

Deus nos livre da bomba de nêutron, do câncer

e das pessoas que cutucam e dizem “Hein? Hein?”.

Deus nos livre da crítica estruturalista e da fome.
Deus nos livre de todos os “ismos”.
Em especial do botulismo.
Deus nos livre da Censura.
E da morte prematura.
Deus nos livre da multidão.
Deus nos livre da solidão.
Deus nos livre, peremptoriamente,

de usar a palavra “peremptoriamente.
Deus nos livre do lirismo e da coriza nasal.
Deus nos livre de outro festival da canção.
E do nosso coração.
Deus nos livre dos bêbados que confidenciam.

Deus nos livre de um dia acordar, de ressaca,
no palco do Teatro Municipal lotado.

Deus nos livre do protocolo,

do requerimento em três vias, das fotografias 3x4,
da ficha de chamada e de descobrir que não é aqui,
é no outro guichê.
Deus nos livre do outro guichê.

Deus nos livre da gincana.

Deus nos livre de perder o Mário Quintana.

Deus nos livre da autoridade competente,
que com a incompetente ainda há diálogo.

Deus nos livre dos que pontificam

e dos que dizem  “óbice”.
Deus nos livre da fome dos outros.
Deus nos livre da meia-idade.
E da falsa humildade.
Deus nos livre da ira, da soberba, da gula,
da luxúria, da avareza, da inveja, da preguiça

e da mania de limpar o ouvido com uma tampa de caneta.
Deus nos livre da terrível faca de dois gumes.

Deus nos livre da paixão desenfreada e da grama artificial.

Deus nos livre dos que querem o nosso mal.
Deus nos livre dos que só querem o nosso bem.
Deus nos livre dos que querem o nosso.
Deus nos livre do  terror e do despertador.

Deus nos livre da tragédia.
E da alta classe média.
Deus nos livre dos futurólogos.
Deus nos livre do futuro!

Deus nos livre da burrice alheia,

que a nossa é pitoresca.
Deus nos livre da superstição.
E de tanta assombração.

Deus nos livre dos nossos salvadores.
Deus nos livre de colidir com um meteoro

e dos pontas que nunca cruzam para a área.

Deus nos livre dos que pedem que Deus os livre.
Deus nos livre das bravatas.
Deus nos livre das gravatas.
E, meu Deus, das literatas.

(Do livro “O Rei do Rock”, Editora Globo, 1978)

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