domingo, 2 de abril de 2023

Será você menos violento do que eu?

 Artur da Távola

Sou violento no instante em que não me interesso pela comida que sobra na minha casa. Sou violento quando ganho mais do que preciso para viver. Sou violento quando executo um trabalho melhor remunerado, apenas porque pude estudar num país onde a maioria não pode. 

Sou violento quando rio da ignorância de alguém. 

Sou violento quando chamo de “verdade” o que é ideologia. 

Sou violento quando espero aplausos pelo que digo e escrevo em vez de estar, na prática, exercendo e aprimorando em silêncio o meu amor ao próximo. 

Sou violento, portanto, quando meu amor ao próximo é verdadeiro, mas retórico. 

Sou violento quando pretendo ter razão. 

Sou violento quando minha razão é defendida a qualquer preço. 

Sou violento quando uso o brilho, a unha; a ofensa; o escárnio; a ironia; a humilhação; a classe social; a compaixão; a inteligência mais desenvolvida; o disfarce; a força, na tentativa de ver vitoriosas a minhas ideias; fé; doutrinas, opiniões; convicções; evidências; verdades; impressões. 

Sou violento até mesmo quando espero a hora de provar que estava certo, com paciência e obstinação, apenas para ser vencedor de algo, ainda que uma vaidosa  aposta. 

Sou violento quando me canso de tentar. 

Sou violento quando concluo que fulano não tem mais jeito. 

Sou violento quando só julgo o próximo. 

Sou violento no ar refrigerado, na direção do carão; na buzina; no farol alto; na discoteca; no som estéreo; no guardanapo de linho; na caderneta de poupança; no tempo que dou ao sistema; na gravata de seda; no me sentir forte porque tantos dependem de mim; na última moda; nos hobbies que tanto prezo; na palavra descuidada; no gosto daquele comentário sobre fulano; no prazer de certas vitórias. 

Sou violento quando vaio; bajulo; esmago; idolatro; descompreendo; despercebo; uso o sabonete que quero; deixo de ver quem explora; calo o protesto por parecer inútil ou temer represália; vou aonde não quero; repito ato dos outros; fujo de mim; sorrio de pena; gargalho de zombaria; julgo o próximo; quero o melhor para os meus filhos e minha família; falo de cima; sei me impor (bastaria saber me pôr. Para que me impor?); vulnero o adversário; fulmino o antagonista; cobro com juros; especulo sem produzir; lucro demais; digo ou penso que “o mundo é dos espertos”; que “tempo é dinheiro”; que “quem pariu Mateus que o embale”, que “levo vantagem em tudo”. 

Sou violento quando ergo muros de defesa e desconfio tanto de mim e da vida que acumulo patrimônio desnecessário; alugo um cofre no banco; garanto o meu futuro e o dos meus; não tenho tempo para os fracos; arraso os adversários, convicto de que esta é a regra do jogo. 

Sou violento quando brilho, quando ganho, quando engano os zagueiros da vida e faço o gol. 

Sou violento quando vivo na disputa, quando mergulho no meu medo; quando não consigo varrer os meus fantasmas nem os temores que me inculcaram ou as perseguições que imagino. 

Sou violento quando não ganho da minha vaidade; quando não me dão o reconhecimento; quando preferem outros; quando deixaram de me chamar e eu os odeio por isso, embora finja não ligar. 

Sou violento quando não aceito a contestação; a discordância; a visão diferente; o desamor. 

Sou violento, enfim, todas as vezes em que suponho ser tudo isso apenas defeitos dos demais, nunca a minha condição humana menor, atritada, difícil e egoísta supondo-me alguém quando sou apenas uma pobre areia cósmica cheia de vaidades e medos, defesas, ambições, mumunhas, ilusões e necessidades. 

(Do livro “Cada um no meu lugar”, de Artur da Távola)

Nenhum comentário:

Postar um comentário