segunda-feira, 3 de abril de 2023

Leão-de-chácara

 João Antônio

O luminoso se acende e, num golpe, fixa as oito letras do nome francês e isto aqui, a que os otários e os espertinhos chamam de buate, está aberto na noite. De olho em pé, aceso e bem. Que para essa gente afobadinha demais, metida a ter vontade, mal acostumada, fantasiada com seus leros e ondas, quase tudo é folgança e prosa fiada. Ainda mais no começo da noite. E o pior é que o movimento e o rumor, as idas e vindas, essa fricoteira toda, para esses caras distraídos e de cabeça fria, é curtição. 

− Faça o favor, doutor. 

Curvo-me, estiro uma fineza, dou o lado direito ao cidadão e à madame. O gajo finge me conhecer para fazer média com a dona e eu entro na dele. Meu cumprimento é largo, igualmente cínico e conluiado. Abro a porta de madeira falsamente antiga, trabalhada e de dourado. Com uma mesura, estendo o braço e ponho para casa o primeiro otário da noite. 

A cambada é grande, folgada, pensando que a noite lhe pertence, ainda mais aqui nestas casas da Zona Sul. O que vai me baixar pela frente não está em nenhum caderno. O que vai pintar de trouxa, espertinho, pé-grande, mocorongo do pé lambuzado, muquira, bêbado amador, loque, cavalo de têta, zé mané dando bandeira, doutor de falsa fama, papagaio enfeitado, quiquiriquis, langanhos, paíbas, não será fácil. Eu aturando, ô pedreira! Para mim a noite vai ser de murro. 

Na noite malhada e escrota, disciplinando mulheres, beliscando os otários, distribuindo mesuras e apanhando grojas, picardo e sonso; mas também molhando a mão dos ratos, que os arregos são de lei, acabarei dando muitas de cerca-lourenço, muita piaba e bastante pau nessa cambada de fariseus, sambudos e mal-topados. Hoje é sexta-feira na cidade. E gajo solto nesta noite é falso boêmio, metido a alegre e sabidinho, achando que é algum manda-tudo na cidade. Mordo-lhes uma grana, é verdade, mas me dão canseira. 

Não sou menino. De mais a mais, foi cedo que aprendi, debaixo de porrada, a ver sem salamaleques as coisas desta vida. (...) 

(Parte do conto “Leão-de-chácara”, de João Antônio)

João Antônio Ferreira Filho, o João Antônio, (São Paulo, 27 de janeiro de 1937 − Rio de janeiro, 31 de outubro de 1996) é o grande repórter do submundo das cidades brasileiras dos anos 1950 e 1960. Seus personagens são duros, sofridos, vivem em um mundo implacável onde qualquer desatenção pode resultar em fome, prisão ou coisa pior. Destaca-se o malandro, figura que vive de golpes, exploração de mulheres e de sua habilidade no jogo. Em nossos tristes tempos de crime organizado, chacinas e corrupção, esse malandro tornou-se ingênuo e anacrônico, mas foi o terror de uma época. 

Uma condição essencial para exercer o ofício de malandro é conhecer a motivação do otário. É preciso saber o que leva um trabalhador a torrar o salário em uma mesa de carteado ou sinuca, como envolver uma “mina” para que lhe entregue a féria do dia, o que quer o burguês endinheirado que frequenta os cabarés no fim de semana. Para isso o malandro precisa saber como o otário pensa, pensar como ele, saber seus sonhos; mas toda empatia tem duas vias, o grande perigo para o malandro é começar a sonhar os sonhos do otário. 

Pirraça, o cínico Leão de Chácara do conto que dá nome ao livro, não tem ilusões sobre a vida noturna e seus frequentadores, respeita mesmo só os seus iguais, os outros leões. Todos os demais são trouxas, coiós, papagaios enfeitados, a quem se deve tratar bem e aturar para morder uma grana. No final da noite volta para a mulher e dois filhos, e na casa do subúrbio chama-se Jaime, se distrai cuidando da horta e tomando sol. 

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