Luís Fernando Veríssimo
Uma das coisas que eu não entendo é retrato falado. Em filme musical americano o retrato falado sai sempre a cara do criminoso, até o último cravo. Mas na vida real, que nada tem de filme americano, o retrato falado nunca tem o menor parentesco com a cara do cara sendo preso.
– Atenção. Aqui está o retrato falado do homem que estamos procurando. Foi feito de acordo com a descrição das dezessete testemunhas do crime. Decorem bem a sua fisionomia. Está decorada?
– Sim senhor.
– Então procurem exatamente o contrário deste retrato. Não podemos errar.
Imagino os problemas que não deve ter o artista encarregado dos retratos falados na polícia. Um homem sensível, obrigado a conviver com a imprecisão de testemunhas e as rudezas da lei.
– O senhor mandou me chamar, Inspetor?
– Mandei, Lúcio. É sobre o seu trabalho. Os seus últimos retratos falados...
– Eu sei, eu sei. Mas é que eu estou numa fase de transição, entende? Deixei o hiper-realismo e estou experimentando com uma volta a formas orgânicas e...
– Eu compreendo, Lúcio. Mas da última vez que usamos um retrato falado seu para pegar alguém, a turma prendeu um orelhão.
O pior deve ser as testemunhas que não sabem descrever o que viram.
– O nariz era assim, um pouco, mais ou menor como o seu, Inspetor.
– E as sobrancelhas? As sobrancelhas são importantes.
– Sobrancelhas? Não sei... como as suas, Inspetor.
– E os olhos.
– Os olhos claros. Como os...
– Já sei. Como os meus. O queixo?
– Parecido com o seu.
– Inspetor, onde é que o senhor estava na noite do crime?
– Cala a boca e desenha, Lúcio.
E há os indecisos.
– Era chinês.
– Tem certeza?
– Bom, ou era chinês ou tinha dormido mal.
E deve haver a testemunha literária.
– Nariz adunco, como de uma ave de rapina. A testa escondida pelos cabelos em desalinho. Pelos seus olhos, vez que outra, passava uma sombra como uma má lembrança. A boca era de uma sensualidade agressiva mas ao mesmo tempo tímida, algo reticente nos cantos, com uma certa arrogância no lábio superior que o lábio inferior refutava e o queixo desmentia. Narinas vividas, como as de um velho cavalo. E isso que eu só o vi por dois segundos.
Os sucintos.
– Era o Charles Bronson com o nariz da Maria Alcina.
− Tipo Austregésilo de Athayde , mas com bigodes mexicanos.
– Uma mistura de cachorro Boxer, comandante da Varig e beque do Madureira.
– Bota aí: a testa do Remy Gorga Filho, o nariz do Giscard D’Estaing, a boca do porteiro do antigo Fred’s e o queixo de Virginia Woolf. Uma orelha da Jaqueline Onassis e a outra, estranhamente, do neto do Getty.
– A Emilinha Borba de barba depois de um mau voo na Ponte Aérea com o Nelson Ned.
E há as surpresas.
– Bom, era um cara comum. Sei lá... Nariz reto, boca de tamanho médio, não tinha bigode... Ah, e um olho só, bem no meio da testa!
O Ciclope ataca outra vez.
Experimente você dar as características para o retrato falado de alguém.
– Os olhos da Sandra Bréa. Isso. Um pouco menos sobrancelha. O nariz da Claire Bloom. De 15 anos atrás. A boca da Cláudia Cardinalle. O queixo da Elizabeth Savala. Um seio da Laura Antonelli e outro da Sydne Rome. As pernas da Jane Fonda.
– Feito. Mas quem é essa?
– Não sei. Mas se a
encontrarem, tragam-na para mim, depressa. E viva!
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