sexta-feira, 7 de abril de 2023

Do ouro incansável

 Cecília Meireles

 

Mil bateias vão rodando
sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
infinitas galerias
penetram morros profundos.
 

De seu calmo esconderijo,
o ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra,
prestígio, poder, engenho...
É tão claro! − e turva tudo:
honra, amor e pensamento.
 

Borda flores nos vestidos,
sobe a opulentos altares,
traça palácios e pontes,
eleva os homens audazes,
e acende paixões que alastram
sinistras rivalidades.
 

Pelos córregos, definham
negros a rodar bateias.
Morre-se de febre e fome
sobre a riqueza da terra:
Uns querem metais luzentes,
outros, as redradas pedras.
 

Ladrões e contrabandistas
estão cercando os caminhos;
cada família disputa
privilégios mais antigos;
os impostos vão crescendo
e as cadeias vão subindo.
 

Por ódio, cobiça, inveja,
vai sendo o inferno traçado.
Os reis querem seus tributos,
− mas não se encontram vassalos.
Mil bateias vão rodando,
mil bateias sem cansaço.
 

Mil galerias desabam;
mil homens ficam sepultos;
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranquilo,
que a noite é um mundo de sustos.
 

Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro. 

(Do livro “Romanceiro da Inconfidência”*) 

* Inspirada por uma visita a Ouro Preto, Cecília Meireles compôs esse poema de temática social, retratando a luta pela liberdade no Brasil do século XVIII durante o episódio da Inconfidência Mineira e incorporando elementos dramáticos, épicos e líricos. 

Por que se chama Romanceiro da Inconfidência?

Romanceiro da Inconfidência é um livro da poetisa brasileira Cecília Meireles e foi publicado pela primeira vez em 1953. A obra, dividida em cinco partes, possui 85 romances ou poemas de caráter narrativo. Ela conta fatos relacionados à Inconfidência Mineira e também anteriores a ela. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário