domingo, 14 de julho de 2019

Mundo

Augusto Meyer


O casarão tinha uma escada curva que ia dar diretamente na varanda. Na laje da soleira, raspada pela solas, uma cavidade antiga bocejava. Ainda me lembro como era bom passar a mão no corrimão liso, fazendo um silvo especial para espantar as sombras que dormiam no canto. A pilastra com a bola lustrosa era um homem careca. Quando eu vinha do colégio, de tarde, gritava na escada pra ouvir a minha voz no vazio. Depois largava a mochila e vá biscoito raminho e marmelada. Minha tia era o carão em pessoa. O sol suspendia o ouro da tarde no muro.

Mas onde está você, Apparício Sampaio? A loja em que você morava continua com os rolos de fazenda na porta, o balcão e a vidraça. Só você não pode mais (nunca mais) comparecer, porque a terra tomou conta do seu corpo. E onde estão os guris camaradas? O magriça bilioso que me ensinou a pitar o primeiro cigarro: na carteira tinha a cara de um malandro de picareta e bigodes. E os gringos filhos do Ercole chacareiro, comedores de tomate cru, caras mais vermelhas que o tomate? E os montinhos de areia onde gente acendia torrões de carbureto?

A praça era um largo aberto no morro: no meio a capelinha de São Pedro toda azul. O morro era a aventura cheia de ar livre, guabirobas e pitangas. Eu era o Mundo. (Apparício Sampaio, dorme bem, meu companheiro...).

Um dia o matungo velho (te lembras?) caiu do barranco e quebrou a perna. A vizinha mandava água e pasto pro coitado sofrer. Ah! Quando eu vi a morte nos olhos mansos do matungo... Moscas passeavam no focinho.

Vejo as bergamotas verdes molhadas pela chuva, cheias de poros lustrosos. A terra do quintal era preta. Uma tardinha de verão, quando o sol ainda fervia nas pedras, passei a cabeça curiosa por cima do muro e vi a filha do vizinho nua no tanque.

Estou pensando no meu primeiro Palhaço. Era um mulatão caiado de alvaiade: passou de pernas bambas no burro, berrando no meio da molecada e da poeira gloriosa:

Hoje, tem lengo-lengo!
Coro: Tem, sim sinhô!
E é na vórta do bonde!
Coro: É, sim sinhô!

Dona Moça e o seu namorado de pince-nez que parava firme na esquina, disfarçando com a bengala? Fui eu o pau de cabeleira e, em paga do recado, ganhei um duzentão dos grandes. (Farejava os mistérios do amor).

Que fim levou meu boné com aba de celulóide?

Mas também que fim levou a chácara do Ercole? No mesmo lugar do seu retângulo verde hoje desce uma rua e sobem os bangalôs.

O primeiro bonde elétrico parou em frente da nossa casa como um brinquedo pra gente grande. Foi um berreiro da gurizada nas janelas.

− Oia o bonde eletro! Oia ele!

Correu tudo assombrado pra cheirar o monstro. Mas o monstro não deu confiança e saiu sapateando nos trilhos, até morrer engolido pela curva.

Tardezinha os filhos do gringo pescavam rãs no açude. O agrião crespo debruava a água pálida. Grilos, meus irmãos tristes, quadrados serenos da horta onde a alface recolhia o sereno, violino finíssimo dos mosquitos, primeira estrela e as vacas ruminado à sombra...

Havia histórias maravihosas na boca da noite. Havia uma aranha interessante na parede do meu quarto. E Deus era sempre aquele barbudo muito bom que acende o fogo do sol nas cortinas claras da janela, manhã cedo, quando os passarinhos cantavam nas laranjeiras do quintal.

(Do livro “Literatura e Poesia”, de Augusto Meyer, 1931)


Sexto ocupante da Cadeira 13, eleito em 12 de maio de 1960, na sucessão de Hélio Lobo e recebido pelo Acadêmico Alceu Amoroso Lima em 19 de abril de 1961.

Augusto Meyer, poeta e ensaísta, nasceu em Porto Alegre, RS, em 24 de janeiro de 1902 e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 10 de julho de 1970.

Era filho de Augusto Ricardo Meyer e de Rosa Meyer, imigrantes alemães. Fez os estudos na cidade natal, mas deixou os cursos regulares para estudar línguas e literatura, dedicando-se a escrever. Colaborou com poemas e ensaios críticos em diversos jornais do Rio Grande do Sul, especialmente Diário de Notícias e Correio do Povo. Estreou na literatura em 1920, com o livro de poesias intitulado A ilusão querida, e foi com os livros Coração verde, Giraluz e Poemas de Bilu que conquistou renome nacional. Esses livros e outras obras posteriores foram depois reunidos em Poesias (1957). Pseudônimo: Guido Leal.

Augusto Meyer é parte do modernismo gaúcho, introduzindo uma feição regionalista na poesia. Há também em seus versos uma linha lírica, quando evoca a infância, num misto de memória e autobiografia. Completa com Raul Bopp e Mário Quintana a trindade modernista do Rio Grande do Sul.

Como ensaísta, deixou estudo sobre Machado de Assis, um dos trabalhos exegéticos mais importantes sobre o escritor maior das letras brasileiras, que tanto admirava. Sua obra de crítico abrange uma vasta gama de interpretações, de autores nacionais e estrangeiros, que divulgou no Brasil.

A literatura e o folclore do Rio Grande do Sul também foram estudados em obras fundamentais. Cultivou uma espécie de memorialismo lírico em Segredos da infância e No tempo da flor. Com recursos de poeta e de pintor, o memorialista impõe, presença de fantasmas familiares, e daí passa aos da sua roda, aos da cidade, aos do mundo.



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