Augusto Meyer
O casarão tinha uma escada curva que
ia dar diretamente na varanda. Na laje da soleira, raspada pela solas, uma
cavidade antiga bocejava. Ainda me lembro como era bom passar a mão no corrimão
liso, fazendo um silvo especial para espantar as sombras que dormiam no canto.
A pilastra com a bola lustrosa era um homem careca. Quando eu vinha do colégio,
de tarde, gritava na escada pra ouvir a minha voz no vazio. Depois largava a
mochila e vá biscoito raminho e marmelada. Minha tia era o carão em pessoa. O sol suspendia
o ouro da tarde no muro.
Mas onde está você, Apparício
Sampaio? A loja em que você morava continua com os rolos de fazenda na porta, o
balcão e a vidraça. Só você não pode mais (nunca mais) comparecer, porque a terra
tomou conta do seu corpo. E onde estão os guris camaradas? O magriça bilioso
que me ensinou a pitar o primeiro cigarro: na carteira tinha a cara de um
malandro de picareta e bigodes. E os gringos filhos do Ercole chacareiro,
comedores de tomate cru, caras mais vermelhas que o tomate? E os montinhos de
areia onde gente acendia torrões de carbureto?
A praça era um largo aberto no
morro: no meio a capelinha de São Pedro toda azul. O morro era a aventura cheia
de ar livre, guabirobas e pitangas. Eu era o Mundo. (Apparício Sampaio, dorme
bem, meu companheiro...).
Um dia o matungo velho (te lembras?)
caiu do barranco e quebrou a perna. A vizinha mandava água e pasto pro coitado
sofrer. Ah! Quando eu vi a morte nos olhos mansos do matungo... Moscas
passeavam no focinho.
Vejo as bergamotas verdes molhadas
pela chuva, cheias de poros lustrosos. A terra do quintal era preta. Uma
tardinha de verão, quando o sol ainda fervia nas pedras, passei a cabeça
curiosa por cima do muro e vi a filha do vizinho nua no tanque.
Estou pensando no meu primeiro
Palhaço. Era um mulatão caiado de alvaiade: passou de pernas bambas no burro,
berrando no meio da molecada e da poeira gloriosa:
Hoje, tem lengo-lengo!
Coro: Tem, sim sinhô!
E é na vórta do bonde!
Coro: É, sim sinhô!
Dona Moça e o seu namorado de
pince-nez que parava firme na esquina, disfarçando com a bengala? Fui eu o pau
de cabeleira e, em paga do recado, ganhei um duzentão dos grandes. (Farejava os
mistérios do amor).
Que fim levou meu boné com aba de
celulóide?
Mas também que fim levou a chácara do
Ercole? No mesmo lugar do seu retângulo verde hoje desce uma rua e sobem os bangalôs.
O primeiro bonde elétrico parou em
frente da nossa casa como um brinquedo pra gente grande. Foi um berreiro da
gurizada nas janelas.
− Oia o bonde eletro! Oia ele!
Correu tudo assombrado pra cheirar o
monstro. Mas o monstro não deu confiança e saiu sapateando nos trilhos, até morrer
engolido pela curva.
Tardezinha os filhos do gringo
pescavam rãs no açude. O agrião crespo debruava a água pálida. Grilos, meus
irmãos tristes, quadrados serenos da horta onde a alface recolhia o sereno,
violino finíssimo dos mosquitos, primeira estrela e as vacas ruminado à
sombra...
Havia histórias maravihosas na boca
da noite. Havia uma aranha interessante na parede do meu quarto. E Deus era
sempre aquele barbudo muito bom que acende o fogo do sol nas cortinas claras da
janela, manhã cedo, quando os passarinhos cantavam nas laranjeiras do quintal.
(Do livro “Literatura
e Poesia”, de Augusto Meyer, 1931)
Sexto ocupante da Cadeira 13,
eleito em 12 de maio de 1960, na sucessão de Hélio Lobo e recebido pelo
Acadêmico Alceu Amoroso Lima em 19 de abril de 1961.
Augusto Meyer, poeta e ensaísta,
nasceu em Porto Alegre ,
RS, em 24 de janeiro de 1902 e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 10 de julho de
1970.
Era filho de Augusto Ricardo
Meyer e de Rosa Meyer, imigrantes alemães. Fez os estudos na cidade natal, mas
deixou os cursos regulares para estudar línguas e literatura, dedicando-se a
escrever. Colaborou com poemas e ensaios críticos em diversos jornais do Rio
Grande do Sul, especialmente Diário de Notícias e Correio do Povo. Estreou na
literatura em 1920, com o livro de poesias intitulado A ilusão querida, e foi
com os livros Coração verde, Giraluz e Poemas de Bilu que conquistou renome
nacional. Esses livros e outras obras posteriores foram depois reunidos em
Poesias (1957). Pseudônimo: Guido Leal.
Augusto Meyer é parte do modernismo gaúcho, introduzindo uma
feição regionalista na poesia. Há também em seus versos uma linha lírica,
quando evoca a infância, num misto de memória e autobiografia. Completa com
Raul Bopp e Mário Quintana a trindade modernista do Rio Grande do Sul.
Como ensaísta, deixou estudo
sobre Machado de Assis, um dos trabalhos exegéticos mais importantes sobre o
escritor maior das letras brasileiras, que tanto admirava. Sua obra de crítico
abrange uma vasta gama de interpretações, de autores nacionais e estrangeiros,
que divulgou no Brasil.
A literatura e o folclore do Rio
Grande do Sul também foram estudados em obras fundamentais. Cultivou uma
espécie de memorialismo lírico em Segredos da infância e No tempo da flor. Com
recursos de poeta e de pintor, o memorialista impõe, presença de fantasmas
familiares, e daí passa aos da sua roda, aos da cidade, aos do mundo.
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