quinta-feira, 4 de julho de 2019

Herança


Apparício Silva Rillo


Galpão velho – foto de Érico Rechenmarcher

Naqueles tempos, sim!
Naqueles tempos até as casas já nasciam velhas.
Eram umas casas cálidas, solenes
Sob as telhas portuguesas, maternais...   
Em pálidos azuis eram pintadas
E em brancos, em ocres e amarelos.
Algumas nem mesmo tinham reboco.
Na carne dos tijolos, mostravam-se nuas,
Abertas em janelas que espiavam
Da sombra verde para o Sol das ruas.

Naqueles tempos, sim!
Naqueles tempos...
Tinham balcões e sacadas essas casas.
E úmidos porões e sótãos com fantasmas.
E tinham jasmineiros sobre os muros
E acolhedoras latrinas de madeira
Disfarçadas entre as plantas dos quintais.
E laranjeiras e galos e cachorros,
Um barril barrigudo cheio d'água
Numa concha de lata para a sede.
Nas varandas, que eram frescas e abertas,
A moleza da sesta numa rede.

Naqueles tempos, sim!
Naqueles tempos
As portas eram altas
E alto o pé-direito das salas dessas casas,
Mas eram simples as pessoas que as casas abrigavam.
Os homens chamavam-se... Bento, Honorato, Deoclécio;
As mulheres eram Carlinda, Emerenciana, Vicentina...
Os homens usavam barbas e picavam fumo em rama.
As mulheres... as mulheres faziam filhos,
Bordados e rosquinhas.
Os homens iam ao clube; as mulheres, à missa.
E homens e mulheres aos velórios
Morriam discretamente e ficavam nos retratos

Naqueles tempos, sim!
Naqueles tempos
A igreja tinha santos nos altares
E havia mulheres rezando ao pé dos santos.
O padre usava uma batina cheia de manchas e botões.
Batizava crianças, encomendava os mortos,
Rezava a missa em latim: Agnus Dei!
E comia cordeiro gordo na mesa do Intendente.
Os homens ajudavam nas obras da igreja,
Mas acreditavam mais nas armas
Que nos santos.

Naqueles tempos, sim!
Naqueles tempos
Os chefes eram chamados coronéis.
Ganhavam seus galões debaixo da fumaça
Em peleias a pata de cavalo,
Garruchas de um tiro só e espadas de bom aço.
As mulheres plantavam flores e temperos,
Pois tinham mesma valia: o espírito e o corpo.
Sabiam receitas de panelas fartas,
Faziam velas de sebo e tachadas de doce
E de graxas e de cinzas, inventavam sabão.

Naqueles tempos, sim!
Naqueles tempos
Os bois mandavam nos homens
E por isso a vida era mansa na cidadezinha.
Arrodeada de ventos, chácaras e estâncias.
Os touros cumpriam devotamente o seu mister
E as vacas, pacientes,
Pariam terneiros... terneiros... terneiros... terneiros...
O campo engordava os bois,
As tropas de abril engordavam os homens
E os homens engordavam as mulheres.
Por isso, a cidade chegou até aqui.
Por isso estamos aqui,
Netos e bisnetos desses homens,
Dessas mulheres, netas e bisnetas.

Por isso, um berro de boi nos toca tanto
E tão profundamente.
Por isso somos guardiões das casas velhas,
Almas de sesmarias e de estâncias,
Paredes que suportam os seus retratos.

O músculo do boi, na força que nos leva,
A barba dos avós, como um selo no queixo.
O doce das avós na memória da boca
E nela este responso...
Naqueles tempos, sim! Naqueles tempos...


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