Valentim Magalhães
I
− Com que
então o júri absolveu o Malheiros?
− Que
Malheiros?
− Aquele sujeito que em maio do ano
passado, tendo surpreendido a mulher em flagrante delito de adultério, matou-a
e ao amante com alguns tiros de revólver, explicou Tancredo.
− Ah! sim,
recordo-me. Mas não vi a notícia, disse Frederico.
− Pois veio na folhas. O júri
reconheceu a justiça da loucura transitória − uma tolice; mas a absolvição era
justa, porque a condenação seria imoral, tão provado ficara o adultério.
Frederico ergueu-se da chaise longue, foi a um guéridon de fumante, tomou e acendeu um
charuto, deu alguns passos pelo gabinete, com ar pensativo. Parou depois em frente
do amigo.
− Queres que te fale com franqueza, meu
caro Tancredo?
E, a um
sinal afirmativo deste:
− Pois bem; acho que foi injusta e
imoral a absolvição; que a condenação do assassino é que seria justa e moral.
− Mas se o
homem apanhou a mulher com a boca na botija, como diz o povo?
− Nem por isso lhe assistia o direito
de matá-la e ao amante. O nosso código penal não reconhece tal direito. Não se
trata da defesa da vida própria sem outro meio de garanti-la senão a morte do agressor.
− Mas
trata-se da defesa da honra, que vale mais que a vida, replicou Tancredo.
− Tá, tá, tá... Não confundamos coisas
distintas. A vida é um princípio absoluto, indiscutível, quase material. A
honra, não; é um princípio discutível e discutido, variável com as idades, os
povos, os climas. O que na França é desonra não o é na Tartária, na China ou na
Zambésia. Além de que as leis oferecem e garantem outro meio de reparação muito
menos violento e muito mais eficaz.
− Qual?
− O
divórcio.
− Ora, o divórcio! E o marido há de
encontrar impunemente nas ruas, nos teatros, nos passeios, a sua desonra viva,
e há de suportar calmamente que o apontem na rua com murmúrios e cochichos
infamantes? Sou um teu criado!
Frederico arrastou uma das elegantes
cadeiras de laca do gabinete pelo espaldar, marchetado de madre-pérola,
trouxe-a para defronte do divã em que o amigo se recostava, escarranchou-se
nela e, sugando uma longa fumaça, que se desdobrou brancacenta no ar,
perfumando-o, disse com voz calma:
− Ouve-me, Tancredo. Sou casado há
três anos com uma mulher formosa, a quem amo e de quem me julgo amado...
− Bem sei, interrompeu o amigo,
acomodando o busto nas almofadas de cetim azul claro, em que se destacava,
bordado a froco de seda ouro velho, o monograma do dono da casa: um F. e um M.
− Decerto que o sabes, pois somos
amigos há dez anos e nunca tivemos segredos uma para o outro. Mas se to digo é
porque preciso estabelecer as bases da minha teoria sobre o adultério. Se minha
mulher, que eu adoro, me traísse um dia, eu não lhe aplicaria o Tue-la do casuístico Dumas Filho.
− Nem ao amante? Perguntou Tancredo, com
um ligeiro tremor na voz, que passou despercebido ao amigo.
− Nem ao amante. Não mataria a adúltera,
porque o adultério é um crime que, no meu pensar, só desonra, só infama, só
envilece a mulher. Se eu faço um contrato de sociedade comercial com um homem
que julgo honesto e ele, traindo-me, rouba-me, sou eu, o roubado, que fico
sujo, desonrado, ou ele, que é o ladrão? Ele, decerto. Como admitir, então, que
a desonra recaia sobre o marido? Pois não é este o roubado? Morta a adúltera, o
adultério é enterrado com ela: viva, marcada com ferrete ignominioso do
divórcio por adultério, o seu crime a acompanhará por toda parte, como um cão
fiel, fechando-lhe todos os lares, justificando todas as investidas e propostas
dos libertinos que a conheçam. Não se deve, portanto, matar a mulher, e, por
conseguinte, tampouco o amante. O crime é dela, e não dele. Um par de boas
bofetadas ou uma roda de bons pontapés certeiros no centro de gravidade é
quanto basta para ensiná-lo a respeitar o quinto mandamento.
− Raciocinas como um jurista e um
filósofo, que és. Eu, porém, que sou médico e sei menos mal o meu Cláudio
Bernard, o meu Lucas, o meu Vogt, encaro a questão por outra face, estudo-a de
outro ponto de vista. Isto de matar ou não matar não deponde das teorias que o
homem adota nem da filosofia ou religião que professa, mas unicamente, sabes de
quê? do temperamento. O Camilo mesmo diz isso, comicamente, num esboço de
comédia que vem na Boêmia do Espírito.
Leste?
− Não li.
− Diz ele, mais ou menos, isto: “Há
maridos que são enganados e matam; outros há que são enganados e... jantam.” Tu
jantarias...
− Tancredo! E Frederico ergueu-se com
as faces afogueadas de vergonha e os lábios trêmulos de ira.
− Perdoa-me. Escapou. Mas essa
revolta instintiva prova que a tua teoria é falsa.
− Não prova tal; mas somente que não
admito insultos ou mesmo gracejos de mau gosto.
− Já te pedi perdão; escapou-me. Bem
sabes quanto ter admito o caráter e quanto respeito as tuas opiniões, por menos
que as compartilhe.
Neste momento ouviram-se duas leves
pancadas numa das folhas da porta do gabinete, que ficara entreaberta, e dava
para o corredor, e logo em seguida uma deliciosa voz feminina, perguntando:
− Pode-se entrar?
− Entra, Gabrielinha; exclamou
Frederico, indo à porta.
Tancredo ergueu-se rápido do divã,
consertou o laço da gravata, compôs os cabelos e esperou de pé, esboçando uma
atitude de respeitosa cortesia.
− Discutiam? Perguntou a mulher do advogado,
inclinando a fronte para os lábios dele e estendendo, ao mesmo tempo, a mão ao
médico, com gesto de amizade.
Era uma moça de 20 a 22 anos, de estatura
média, com uma cabeça graciosa e pequenina como a de uma rola. Morena, desse
moreno claro e ardente das brasileiras do Sul, brilhavam-lhe umidamente os
grandes olhos negros, alegres e bons, e a boca pequena, mas de lábios carnudos,
tinha sorrisos que eram beijos vagos, que pareciam endereçados à pessoa que os
olhos fitavam. O queixo redondo, cheio, com uma covinha, as orelhas róseas e
bem feitas, e o cabelo negro, ondeado, erguido da testa num penteado de
encantadora singeleza, completavam a fisionomia mais fresca, mais graciosa,
mais tentadora que possa desejar uma mulher coquette.
O vestido, de uma simplicidade
elegantíssima aumentava o ar garrido e inocente de toda ela.
Sentou-se à secretária do marido, na
cadeira de rosca e, fazendo-a dar uma volta, pôs-se a brincar com um
corta-papel de prata e marfim entre as mãozinhas macias de unhas luzentes.
− Não discutíamos, conversávamos...
respondeu-lhe o esposo, tornando a sentar-se.
− E a respeito de quê? e,
voltando-se para o médico: O doutor perdoa-me a curiosidade, não perdoa? É tão
própria das mulheres!...
− Decerto, minha senhora. É o seu
maior encanto e a sua melhor arma.
− Conversávamos a propósito do
Malheiros, aquele sujeito que matou a mulher e o homem com quem ela o traía.
− Oh! Que assunto horrível! Antes
discutissem política.
E nesse momento não sorria.
− O Tancredo aprovava a absolvição;
eu condenava-a, por só reconhecer o direito de matar em legítima defesa.
− Basta; o assunto, além de trágico,
não me interessa; e, levando os olhos do marido para o médico, perguntou a
este, sorrindo-lhe, isto é, beijando-o:
− Vai amanhã ouvir o Othelo, doutor?
II
Subordinada ao título Dramas do Adultério, impresso em
versais, na terceira coluna da primeira página do diário de 26 de agosto de
188... lia-se a seguinte notícia:
“Uma terrível tragédia acaba de
dar-se nesta capital; mais uma dessas hediondas cenas de sangue motivada pela
traição conjugal.
“Infelizmente os personagens desse
novo drama do adultério pertencem à nossa melhor sociedade. O marido, vingador
austero e implacável da honra do lar doméstico, conspurcado pela mais
desenfreada luxúria, é o ilustre advogado Dr. Frederico Mendes, uma das maiores
glórias do foro brasileiro.
“Narremos, porém, os fatos, segundo
as notas do nosso repórter, que temos à vista.
“O referido advogado e o Dr. Tancredo
Lopes, clínico bem conhecido, eram amigos íntimos: aquele casado, solteiro
este. Em dias da semana passada, fora o Dr. Mendes a Ouro Preto, no exercício
de sua profissão, viagem em que devia demora-se oito dias, pelo menos.
“Ou porque o negócio que o levara a
Minas tivesse tido solução rápida que a que previa o ilustre advogado, ou por
qualquer outro motivo que não conhecemos, o certo é que regressou ontem a esta
cidade, inesperadamente, sem prévio aviso telegráfico, provavelmente no intuito
de causar à sua esposa uma surpresa que julgava lhe fosse agradável.
“Mal sabia o desgraçado o que o esperava no lar!
“Está situada a sua casa na rua
Marquês de Olinda, nº... . Chegando às dez horas da noite à Estação Central,
pois o trem viera com atraso, tomou um tílburi e mandou tocar para casa.
“Desejando causar
surpresa, nela penetrou pelos fundos, sem ruído.
“Chegando à sala de jantar, deserta e
pouco iluminada, viu luz no quarto conjugal e ouviu vozes e risos... Empurrou a
porta... Momentos depois a casa, erma e silenciosa, ressoou longamente com os
estampidos horríveis de quatro ou cinco tiros de revólver.
“Quando a polícia e populares a
invadiram alguns minutos depois, atraídos pelos tiros e pelos gritos, medonho
foi espetáculo que se lhes antolhou.
“Dois cadáveres jaziam prostrados no
chão, banhados no próprio sangue. Eram o da esposa adúltera e o do seu amante.
Aquela fora atingida por duas balas: uma no coração e outra no ventre; e sobre
o peignoir de surah de seda vieux-rose
escorria fartamente o sangue.
“Seu amante, em mangas de camisa,
estava estendido de frente, com o tronco torcido, tendo agarrada uma cadeira na
mão direita, o que indicava que procurara defender-se. Uma bala atravessou-lhe
a garganta, outra partira-lhe a clavícula direita. O grande espelho do rico psiché de pau-rosa estava feito em
estilhaços.
“O Dr. Mendes foi encontrado num
estado de grande excitação nervosa, passeando na sala de jantar com o revólver
na mão, e exclamando ininterruptamente: “Infames! Infames! Infames!”
O mais que se seguiu não interessa:
exame e remoção dos cadáveres, prisão do assassino, etc.
Mas o que a imprensa não publicou e é
deveras interessante, é que sobre a secretária de Frederico Mendes, sob um peso
de cristal, havia um maço de provas tipográficas e na primeira delas lia-se o
seguinte:
“NÃO A MATES!”
(Resposta ao Tue-la de Alexandre Dumas Filho)
Estudo Filosófico,
Jurídico e Social
Por
FREDERICO MENDES
Bacharel em Direito e
advogado
nos auditórios do Rio
de Janeiro.
*****
Do livro “O Conto do
Rio de Janeiro”,
Seleção e notas de R.
Magalhães Júnior.
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