domingo, 21 de julho de 2019

Teorias

Valentim Magalhães


I

− Com que então o júri absolveu o Malheiros?

− Que Malheiros?

− Aquele sujeito que em maio do ano passado, tendo surpreendido a mulher em flagrante delito de adultério, matou-a e ao amante com alguns tiros de revólver, explicou Tancredo.

− Ah! sim, recordo-me. Mas não vi a notícia, disse Frederico.

− Pois veio na folhas. O júri reconheceu a justiça da loucura transitória − uma tolice; mas a absolvição era justa, porque a condenação seria imoral, tão provado ficara o adultério.

Frederico ergueu-se da chaise longue, foi a um guéridon de fumante, tomou e acendeu um charuto, deu alguns passos pelo gabinete, com ar pensativo. Parou depois em frente do amigo.

− Queres que te fale com franqueza, meu caro Tancredo?

E, a um sinal afirmativo deste:

− Pois bem; acho que foi injusta e imoral a absolvição; que a condenação do assassino é que seria justa e moral.

− Mas se o homem apanhou a mulher com a boca na botija, como diz o povo?

− Nem por isso lhe assistia o direito de matá-la e ao amante. O nosso código penal não reconhece tal direito. Não se trata da defesa da vida própria sem outro meio de garanti-la senão a morte do agressor.

− Mas trata-se da defesa da honra, que vale mais que a vida, replicou Tancredo.

− Tá, tá, tá... Não confundamos coisas distintas. A vida é um princípio absoluto, indiscutível, quase material. A honra, não; é um princípio discutível e discutido, variável com as idades, os povos, os climas. O que na França é desonra não o é na Tartária, na China ou na Zambésia. Além de que as leis oferecem e garantem outro meio de reparação muito menos violento e muito mais eficaz.

− Qual?

− O divórcio.

− Ora, o divórcio! E o marido há de encontrar impunemente nas ruas, nos teatros, nos passeios, a sua desonra viva, e há de suportar calmamente que o apontem na rua com murmúrios e cochichos infamantes? Sou um teu criado!

Frederico arrastou uma das elegantes cadeiras de laca do gabinete pelo espaldar, marchetado de madre-pérola, trouxe-a para defronte do divã em que o amigo se recostava, escarranchou-se nela e, sugando uma longa fumaça, que se desdobrou brancacenta no ar, perfumando-o, disse com voz calma:

− Ouve-me, Tancredo. Sou casado há três anos com uma mulher formosa, a quem amo e de quem me julgo amado...

− Bem sei, interrompeu o amigo, acomodando o busto nas almofadas de cetim azul claro, em que se destacava, bordado a froco de seda ouro velho, o monograma do dono da casa: um F. e um M.

− Decerto que o sabes, pois somos amigos há dez anos e nunca tivemos segredos uma para o outro. Mas se to digo é porque preciso estabelecer as bases da minha teoria sobre o adultério. Se minha mulher, que eu adoro, me traísse um dia, eu não lhe aplicaria o Tue-la do casuístico Dumas Filho.

− Nem ao amante? Perguntou Tancredo, com um ligeiro tremor na voz, que passou despercebido ao amigo.

− Nem ao amante. Não mataria a adúltera, porque o adultério é um crime que, no meu pensar, só desonra, só infama, só envilece a mulher. Se eu faço um contrato de sociedade comercial com um homem que julgo honesto e ele, traindo-me, rouba-me, sou eu, o roubado, que fico sujo, desonrado, ou ele, que é o ladrão? Ele, decerto. Como admitir, então, que a desonra recaia sobre o marido? Pois não é este o roubado? Morta a adúltera, o adultério é enterrado com ela: viva, marcada com ferrete ignominioso do divórcio por adultério, o seu crime a acompanhará por toda parte, como um cão fiel, fechando-lhe todos os lares, justificando todas as investidas e propostas dos libertinos que a conheçam. Não se deve, portanto, matar a mulher, e, por conseguinte, tampouco o amante. O crime é dela, e não dele. Um par de boas bofetadas ou uma roda de bons pontapés certeiros no centro de gravidade é quanto basta para ensiná-lo a respeitar o quinto mandamento.

− Raciocinas como um jurista e um filósofo, que és. Eu, porém, que sou médico e sei menos mal o meu Cláudio Bernard, o meu Lucas, o meu Vogt, encaro a questão por outra face, estudo-a de outro ponto de vista. Isto de matar ou não matar não deponde das teorias que o homem adota nem da filosofia ou religião que professa, mas unicamente, sabes de quê? do temperamento. O Camilo mesmo diz isso, comicamente, num esboço de comédia que vem na Boêmia do Espírito. Leste?

− Não li.

− Diz ele, mais ou menos, isto: “Há maridos que são enganados e matam; outros há que são enganados e... jantam.” Tu jantarias...

− Tancredo! E Frederico ergueu-se com as faces afogueadas de vergonha e os lábios trêmulos de ira.

− Perdoa-me. Escapou. Mas essa revolta instintiva prova que a tua teoria é falsa.

− Não prova tal; mas somente que não admito insultos ou mesmo gracejos de mau gosto.

− Já te pedi perdão; escapou-me. Bem sabes quanto ter admito o caráter e quanto respeito as tuas opiniões, por menos que as compartilhe.

Neste momento ouviram-se duas leves pancadas numa das folhas da porta do gabinete, que ficara entreaberta, e dava para o corredor, e logo em seguida uma deliciosa voz feminina, perguntando:

− Pode-se entrar?

− Entra, Gabrielinha; exclamou Frederico, indo à porta.

Tancredo ergueu-se rápido do divã, consertou o laço da gravata, compôs os cabelos e esperou de pé, esboçando uma atitude de respeitosa cortesia.

− Discutiam? Perguntou a mulher do advogado, inclinando a fronte para os lábios dele e estendendo, ao mesmo tempo, a mão ao médico, com gesto de amizade.

Era uma moça de 20 a 22 anos, de estatura média, com uma cabeça graciosa e pequenina como a de uma rola. Morena, desse moreno claro e ardente das brasileiras do Sul, brilhavam-lhe umidamente os grandes olhos negros, alegres e bons, e a boca pequena, mas de lábios carnudos, tinha sorrisos que eram beijos vagos, que pareciam endereçados à pessoa que os olhos fitavam. O queixo redondo, cheio, com uma covinha, as orelhas róseas e bem feitas, e o cabelo negro, ondeado, erguido da testa num penteado de encantadora singeleza, completavam a fisionomia mais fresca, mais graciosa, mais tentadora que possa desejar uma mulher coquette.

O vestido, de uma simplicidade elegantíssima aumentava o ar garrido e inocente de toda ela.

Sentou-se à secretária do marido, na cadeira de rosca e, fazendo-a dar uma volta, pôs-se a brincar com um corta-papel de prata e marfim entre as mãozinhas macias de unhas luzentes.

− Não discutíamos, conversávamos... respondeu-lhe o esposo, tornando a sentar-se.

− E a respeito de quê? e, voltando-se para o médico: O doutor perdoa-me a curiosidade, não perdoa? É tão própria das mulheres!...

− Decerto, minha senhora. É o seu maior encanto e a sua melhor arma.

− Conversávamos a propósito do Malheiros, aquele sujeito que matou a mulher e o homem com quem ela o traía.

− Oh! Que assunto horrível! Antes discutissem política.

E nesse momento não sorria.

− O Tancredo aprovava a absolvição; eu condenava-a, por só reconhecer o direito de matar em legítima defesa.

− Basta; o assunto, além de trágico, não me interessa; e, levando os olhos do marido para o médico, perguntou a este, sorrindo-lhe, isto é, beijando-o:

− Vai amanhã ouvir o Othelo, doutor?


II

Subordinada ao título Dramas do Adultério, impresso em versais, na terceira coluna da primeira página do diário de 26 de agosto de 188... lia-se a seguinte notícia:

“Uma terrível tragédia acaba de dar-se nesta capital; mais uma dessas hediondas cenas de sangue motivada pela traição conjugal.

“Infelizmente os personagens desse novo drama do adultério pertencem à nossa melhor sociedade. O marido, vingador austero e implacável da honra do lar doméstico, conspurcado pela mais desenfreada luxúria, é o ilustre advogado Dr. Frederico Mendes, uma das maiores glórias do foro brasileiro.

“Narremos, porém, os fatos, segundo as notas do nosso repórter, que temos à vista.

“O referido advogado e o Dr. Tancredo Lopes, clínico bem conhecido, eram amigos íntimos: aquele casado, solteiro este. Em dias da semana passada, fora o Dr. Mendes a Ouro Preto, no exercício de sua profissão, viagem em que devia demora-se oito dias, pelo menos.

“Ou porque o negócio que o levara a Minas tivesse tido solução rápida que a que previa o ilustre advogado, ou por qualquer outro motivo que não conhecemos, o certo é que regressou ontem a esta cidade, inesperadamente, sem prévio aviso telegráfico, provavelmente no intuito de causar à sua esposa uma surpresa que julgava lhe fosse agradável.

“Mal sabia o desgraçado o que o esperava no lar!

“Está situada a sua casa na rua Marquês de Olinda, nº... . Chegando às dez horas da noite à Estação Central, pois o trem viera com atraso, tomou um tílburi e mandou tocar para casa.

“Desejando causar surpresa, nela penetrou pelos fundos, sem ruído.

“Chegando à sala de jantar, deserta e pouco iluminada, viu luz no quarto conjugal e ouviu vozes e risos... Empurrou a porta... Momentos depois a casa, erma e silenciosa, ressoou longamente com os estampidos horríveis de quatro ou cinco tiros de revólver.

“Quando a polícia e populares a invadiram alguns minutos depois, atraídos pelos tiros e pelos gritos, medonho foi espetáculo que se lhes antolhou.

“Dois cadáveres jaziam prostrados no chão, banhados no próprio sangue. Eram o da esposa adúltera e o do seu amante. Aquela fora atingida por duas balas: uma no coração e outra no ventre; e sobre o peignoir de surah de seda vieux-rose escorria fartamente o sangue.

“Seu amante, em mangas de camisa, estava estendido de frente, com o tronco torcido, tendo agarrada uma cadeira na mão direita, o que indicava que procurara defender-se. Uma bala atravessou-lhe a garganta, outra partira-lhe a clavícula direita. O grande espelho do rico psiché de pau-rosa estava feito em estilhaços.

“O Dr. Mendes foi encontrado num estado de grande excitação nervosa, passeando na sala de jantar com o revólver na mão, e exclamando ininterruptamente: “Infames! Infames! Infames!”

O mais que se seguiu não interessa: exame e remoção dos cadáveres, prisão do assassino, etc.

Mas o que a imprensa não publicou e é deveras interessante, é que sobre a secretária de Frederico Mendes, sob um peso de cristal, havia um maço de provas tipográficas e na primeira delas lia-se o seguinte:

“NÃO A MATES!

(Resposta ao Tue-la de Alexandre Dumas Filho)

Estudo Filosófico, Jurídico e Social

Por

FREDERICO MENDES

Bacharel em Direito e advogado
nos auditórios do Rio de Janeiro.

*****

Do livro “O Conto do Rio de Janeiro”,
Seleção e notas de R. Magalhães Júnior. 

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