sexta-feira, 19 de julho de 2019

O Negrinho Adão da Rua da Praia



Reprodução fotográfica da aquarela de Francis Pelichek:
a cachorra Fuzarca, o cego Alemãozinho e o pretinho Adão,
na rua da Praia.

O pretinho Adão, o mais serelepe dos vendedores de jornais, passava aos pulos, escorado na muleta, assobiando de contente. Espécie de saci da rua da Praia, apesar da perna encolhida, ele saltava nos bondes e jogava bola como qualquer moleque. Era um virtuoso do yo-yo.

De repente a placidez da rua é violentada. Pedruca, célebre pistoleiro e guarda-costas, é esbofeteado por um viajante no bar Antonello, ali nos Largo. Não reage logo. Sai e sobe a Ladeira em direção ao Palácio, onde se arma de um mosquetão e volta para a desforra. Traz a arma escondia sob a capa. Ao defrontar o largo, num desvario homicida, começa a atirar, abatendo um inspetor de polícia e um guarda. Vários populares ficam feridos. Acossado pela multidão ele recua Ladeira acima agarrado no negrinho Adão, como escudo, para se proteger dos revólveres que começavam a caçá-lo. Some em direção ao refúgio seguro no alto da Matriz. Isso por volta de 1934

(...)

Negrinho Adão, que trabalho me deste para recordar-te o nome! Há dias eu vinha importunando amigos a procura dele. Ninguém conseguia informar. Corri a rua da Praia de ponta a ponta, de grupo em grupo, indagando, recompondo a história aquela. Não se lembravam de ti. De ti sim, mas não do nome. Fui ao restaurante Dona Maria, consultei a velha guarda, sem resultado. Mesmo o Johnson, que encostou perto, me falhou na memória. Eu estava entre Catarino e Adão, pendendo mais o primeiro. Até que, há poucos dias o Rui Vieira da Rocha me afirma por telefone ter sabido do João Freire a tua verdadeira identidade. Depois o Cícero Soares e o Amaro Júnior deram-me a confirmação.

A culpa é das nossas cabeças desbotadas pelo tempo, Adãozinho. E todo mundo recorda o Pedruca. É que o terror fica mais gravado que a ternura. Sim, porque foste a ternura da rua da Praia. O negro Riva já te havia apontado, numa daquelas inesquecíveis crônicas que ele escrevia no “Jornal da Manhã”.

Eis que me surge outro problema: a tua fotografia, a tua imagem. Percorri os arquivos das redações, sem resultado. Então de repente, enquanto eu batia este reconto na portátil, me vem uma intuição: Pelichek! Sim Francis Pelichek, o genial corcundinha, mestre do pincel, das grandes noites da boêmia porto-alegrense, havia se inspirado em ti, na tua ternura para imortalizar-te numa aquarela. Suspendi o trabalho e fui direto ao endereço certo. O Bibiano e a Zaida tinham, com efeito, na parede do apartamento, o quadro que eu buscava. E com que emoção eu te olhei novamente, tal como eras, tu e o ceguinho que carregavas pela rua, o Alemãozinho. Aquele guaipeca ao lado, seria a Fuzarca?

Não sei, vocês todos desapareceram. Tu, o Alemãozinho, o Pelichek. A Fuzarca, não fugindo aos riscos da rua da Praia de então, morreu baleada por um médico maluco, que passou a vida inteira matando cachorro... a tiros.

Mas o esforço do cronista foi premiado, Adãozinho. Daqui por diante a tua figura, que foi a humilde alegria da nossa rua, ficará pendurada na parede do meu estúdio, para lembrar as coisas consoladoras que a vida também oferece. Alegria e bondade, como sempre me sugeriu o teu vulto buliçoso e despreocupado, saltando com tua muleta pela rua da Praia, vendendo jornais, vendendo bilhetes e assobiando bonito as músicas do momento.

(Do livro “Rua da Praia”, de Nilo Ruschel, 1971)


Nilo Ruschel − 1931, na Rádio Sociedade Gaúcha

O nome completo dele é Nilo Miranda Ruschel, nasceu em Estrela, no Rio Grande do Sul, no dia 05 de janeiro de 1911, faleceu em Porto Alegre no dia 07 de março de 1975.

Nilo Ruschel era jornalista, advogado, professor e escritor e dos primeiros professores universitários de Jornalismo (PUCRS e UFRGS, anos 1950). Junto com o irmão Ernani foi locutor pioneiro do rádio gaúcho, atuando nas emissoras Gaúcha e Difusora, nos anos 1930 e 1940.

Foi um dos primeiros locutores da Rádio Gaúcha e primeiro corretor de anúncios radiofônicos. Desenvolveu programas para a rádio Farroupilha, além de transmitir a primeira Festa da Uva, diretamente de Caxias do Sul, em 1932, através da linha telefônica. Iniciou na literatura com o livro de poesias “Canções de Luz Sonhos” e, quatro anos mais tarde, lançou o ensaio “O Gaúcho a Pé”. Como assessor de turismo, revitalizou o Chalé da Praça XV. Além disso, foi o descobridor de novos talentos como Heron Domingues e Rui Figueira, que se destacariam depois como locutores do “Repórter Esso”.

Na década de 1970, lançou “Rua da Praia”, um livro muito importante porque ele traz aspectos históricos e aspectos vivenciais dele também a respeito da Rua da Praia, uma narrativa primorosa, recheada de informações. Aquele livro, vocês lendo, vão perceber o quanto ele colocou de pesquisa, pesquisa de campo, pesquisa de dados. Algo realmente de grande relevância.

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