Reprodução
fotográfica da aquarela de Francis Pelichek:
a cachorra Fuzarca, o
cego Alemãozinho e o pretinho Adão,
na rua da Praia.
na rua da Praia.
O pretinho Adão, o mais serelepe
dos vendedores de jornais, passava aos pulos, escorado na muleta, assobiando de
contente. Espécie de saci da rua da Praia, apesar da perna encolhida, ele
saltava nos bondes e jogava bola como qualquer moleque. Era um virtuoso do
yo-yo.
De repente a placidez da rua é
violentada. Pedruca, célebre pistoleiro e guarda-costas, é esbofeteado por um
viajante no bar Antonello, ali nos Largo. Não reage logo. Sai e sobe a Ladeira
em direção ao Palácio, onde se arma de um mosquetão e volta para a desforra.
Traz a arma escondia sob a capa. Ao defrontar o largo, num desvario homicida,
começa a atirar, abatendo um inspetor de polícia e um guarda. Vários populares
ficam feridos. Acossado pela multidão ele recua Ladeira acima agarrado no
negrinho Adão, como escudo, para se proteger dos revólveres que começavam a
caçá-lo. Some em direção ao refúgio seguro no alto da Matriz. Isso por volta de
1934
(...)
Negrinho Adão, que trabalho me
deste para recordar-te o nome! Há dias eu vinha importunando amigos a procura
dele. Ninguém conseguia informar. Corri a rua da Praia de ponta a ponta, de
grupo em grupo, indagando, recompondo a história aquela. Não se lembravam de
ti. De ti sim, mas não do nome. Fui ao restaurante Dona Maria, consultei a
velha guarda, sem resultado. Mesmo o Johnson, que encostou perto, me falhou na
memória. Eu estava entre Catarino e Adão, pendendo mais o primeiro. Até que, há
poucos dias o Rui Vieira da Rocha me afirma por telefone ter sabido do João
Freire a tua verdadeira identidade. Depois o Cícero Soares e o Amaro Júnior
deram-me a confirmação.
A culpa é das nossas cabeças
desbotadas pelo tempo, Adãozinho. E todo mundo recorda o Pedruca. É que o
terror fica mais gravado que a ternura. Sim, porque foste a ternura da rua da
Praia. O negro Riva já te havia apontado, numa daquelas inesquecíveis crônicas
que ele escrevia no “Jornal da Manhã”.
Eis que me surge outro problema:
a tua fotografia, a tua imagem. Percorri os arquivos das redações, sem
resultado. Então de repente, enquanto eu batia este reconto na portátil, me vem
uma intuição: Pelichek! Sim Francis Pelichek, o genial corcundinha, mestre do
pincel, das grandes noites da boêmia porto-alegrense, havia se inspirado em ti,
na tua ternura para imortalizar-te numa aquarela. Suspendi o trabalho e fui
direto ao endereço certo. O Bibiano e a Zaida tinham, com efeito, na parede do
apartamento, o quadro que eu buscava. E com que emoção eu te olhei novamente,
tal como eras, tu e o ceguinho que carregavas pela rua, o Alemãozinho. Aquele
guaipeca ao lado, seria a Fuzarca?
Não sei, vocês todos desapareceram.
Tu, o Alemãozinho, o Pelichek. A Fuzarca, não fugindo aos riscos da rua da
Praia de então, morreu baleada por um médico maluco, que passou a vida inteira
matando cachorro... a tiros.
Mas o esforço do cronista foi
premiado, Adãozinho. Daqui por diante a tua figura, que foi a humilde alegria
da nossa rua, ficará pendurada na parede do meu estúdio, para lembrar as coisas
consoladoras que a vida também oferece. Alegria e bondade, como sempre me
sugeriu o teu vulto buliçoso e despreocupado, saltando com tua muleta pela rua
da Praia, vendendo jornais, vendendo bilhetes e assobiando bonito as músicas do
momento.
(Do livro “Rua da
Praia”, de Nilo Ruschel, 1971)
Nilo Ruschel − 1931, na
Rádio Sociedade Gaúcha
O nome completo dele é Nilo Miranda Ruschel, nasceu em
Estrela, no Rio Grande do Sul, no dia 05 de janeiro de 1911, faleceu em Porto Alegre no dia
07 de março de 1975.
Nilo Ruschel era jornalista,
advogado, professor e escritor e dos primeiros professores universitários de
Jornalismo (PUCRS e UFRGS, anos 1950). Junto com o irmão Ernani foi locutor
pioneiro do rádio gaúcho, atuando nas emissoras Gaúcha e Difusora, nos anos
1930 e 1940.
Foi um dos primeiros locutores da
Rádio Gaúcha e primeiro corretor de anúncios radiofônicos. Desenvolveu
programas para a rádio Farroupilha, além de transmitir a primeira Festa da Uva,
diretamente de Caxias do Sul, em 1932, através da linha telefônica. Iniciou na
literatura com o livro de poesias “Canções de Luz Sonhos” e, quatro anos mais
tarde, lançou o ensaio “O Gaúcho a Pé”. Como assessor de turismo, revitalizou o
Chalé da Praça XV. Além disso, foi o descobridor de novos talentos como Heron
Domingues e Rui Figueira, que se destacariam depois como locutores do “Repórter
Esso”.
Na década de 1970, lançou “Rua da
Praia”, um livro muito importante porque ele traz aspectos históricos e
aspectos vivenciais dele também a respeito da Rua da Praia, uma narrativa
primorosa, recheada de informações. Aquele livro, vocês lendo, vão perceber o
quanto ele colocou de pesquisa, pesquisa de campo, pesquisa de dados. Algo
realmente de grande relevância.
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