quinta-feira, 4 de julho de 2019

Histórias do Hotel do Guedes


O Hotel do Guedes I


Lauro Guedes tinha nove filhos homens. Sustentava a todos com a renda do Hotel Brasil, de que era proprietário. Situado a uma quadra da Praça XV de Novembro, em São Borja, era praticamente a única hospedaria da cidade nos anos 40. Além dele a pensão de dona Miloca, do seu Gastão Ponsi e mais algumas menos credenciadas.

Seu Guedes, como o chamavam, era o factótum do hotel. De estatura média, ágil de corpo, atendia portaria e cozinha, revisava quartos, fazia o rol das compras do dia e tinha tempo, ainda, para entreter longos papos com seus amigos mais chegados − dentre os quais o doutor Baglioni, o José Motta “da farmácia”, o seu Raymundo “da Prefeitura” e mais alguns. Na portaria de seu hotel − apenas uma pequena sala com uma escrivaninha e algumas cadeiras − o mate não parava nunca. Seu Guedes conversava com quantos chegassem, sabia as novidades da capital e de Santa Maria através dos viajantes que se hospedavam e as notícias do interior pela boca dos fazendeiros seus clientes.

Seu hotel, em termos atuais, não mereceria talvez nem mesmo uma estrela. Salvo três ou quatro quartos de casal, os demais comportavam de duas a quatro camas, além dos aposentos improvisados − no corredor, na sala de refeições − onde colocava colchões quando a lotação normal esgotava. O cardápio era espartano: arroz, feijão, carne frita, às vezes um pedaço de abóbora, batata doce ou aipim. Sobremesa e cafezinho eram luxos.

Os sanitários, por sua vez, não primavam pelo asseio. Tinham o fundamental: o vaso para as necessidades, uma pia, um chuveiro de água fria, fosse no inverno ou verão. Se alguém desejasse banho quente, seu Guedes providenciava um “bacião” de lata e uma chaleira grande de água fervente.

Um viajante novo, que se hospedava pela primeira vez no Hotel Brasil, teve necessidade de usar o sanitário. Fez o que tinha de fazer, veio à portaria e reclamou de seu Guedes:

− O senhor não me leve a mal, mas seus banheiros não permitem nem mesmo que se vá aos pés com tranquilidade. Milhares de moscas não deixam a gente nem mesmo abrir a boca.

Seu Guedes nem se perturbou:

− É que o amigo não conhece os segredos do meu hotel. Quando desejar tranquilidade no sanitário − já vi que o senhor é um homem fino −, procure usá-lo na hora do almoço. Não vai encontrar uma única mosca.

 − Mas como?

− É que na hora da boia elas se mudam todas para o refeitório.

*****

Hotel do Guedes II

Seu Guedes, que já conhecemos, estava com seu hotel lotado. Era inverno e os viajantes e hóspedes não tinham como afastar-se de São Borja. Pelo trem de Santa Maria chegou um cliente novo. Não havia vaga, informou o seu Guedes. Tanto o recém chegado insistiu que seu Guedes encontrou uma solução:

− Olhe, só há um jeito nesta hora da noite. Tenho um hóspede dormindo num quarto de duas camas – o último no final do corredor. O homem é surdo e brabo. Não gosta de companhia, paga diária dobrada para não ser incomodado. Mas, pra lhe servir, posso abrir uma exceção e ceder a cama vaga. Mas, pelo amor de Deus, não faça barulho, abra as malas com todo cuidado, não acenda a luz. Deite-se sem fazer ruído, amanhã o quarto desocupa e o senhor fica à vontade.

Na contingência o cliente fez o que lhe foi solicitado. Na meia luz do quarto observou o companheiro que dormia, silenciosamente, nem mesmo seus suspiros se escutavam. Deitado de costas, tinha as mãos cruzadas sobre o peito.

Ao amanhecer do outro dia um reboliço de gente na frente do quarto. Seu Guedes bateu à porta e chamou pelo “contingenciado”:

− Levanta-te rápido, amigo, que temos de retirar seu companheiro.

Sentou-se na cama o viajante. A seu lado, a menos de metro e meio, o companheiro de quarto: um defunto. Furioso, o hóspede enfiou as calças, abriu a porta, deu com o caixão já preparado para receber o finado, duas ou três mulheres chorando, o funebreiro don Hilário com duas coroas na mão, alguns curiosos. Interpelou a seu Guedes:

− Mas então isso é coisa que se faça, seu hoteleiro? Me fazer dormir ao lado de um defunto? Olhe, eu...

Seu Guedes, com a mesma cara de sempre, acomodou a situação:

− Não se irrite, o senhor dormiu o sono dos justos, descansou como um frade bem comido e se lhe tocou este quarto e esta cama ao lado do viajante que morreu do coração na tardezita de ontem, foi por sua insistência.

– Mas...

– Não tem mais nem menos. Se eu lhe dissesse que havia um defunto no quarto o senhor ia acabar dormindo num dos bancos da praça. E eu, fique o senhor sabendo, procuro ser gentil com os meus hóspedes. Sai o defunto, fica o amigo. Tudo na santa paz.

*****

(Do livro Rapa de Tacho − Causos Gauchescos, 
de Apparício Silva Rillo)


* Apparício Silva Rillo foi um dos grandes escritores do Rio Grande do Sul, criativo, pesquisador de campo, hilário, e por certo um dos mais geniais poetas, sabia feito poucos, utilizar o imaginário na produção de seus trabalhos. Ora, patrono da Cadeira nº 16 da Academia Santo-angelense de Letras, embora na saudade, merece nosso reconhecimento. Os textos acima, são da obra Rapa de Tacho, causos gauchescos.

Apparício Silva Rillo (Porto Alegre, 8 de agosto de 1931 − São Borja, 23 de junho de 1995) foi um poeta, folclorista e escritor brasileiro.

Apesar de nascido em Porto Alegre, fixou residência em São Borja. Publicou artigos e ensaios na imprensa, livros de contos e de poesia e peças de teatro. Autor de Literatura de Latrina, sobre frases escritas nos sanitários das cidades gaúchas. Já se vieram 1978 e a série Rapa de Tacho I, II e III. Ganhador do Prêmio Ilha de Laytano em 1980 e do Prêmio Nacional de Crônicas em 1978.

Foi membro da Academia Rio-grandense de Letras e da Academia da Estância da Poesia Crioula.


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