Foi então que o chefe da central, que
era um homem sabedor e prático, expoente de uma época e de uma classe (com a
dose social que vocês quiserem) atendeu ao telefone o seu colega da delegação
do Norte, homem prático e sabedor, expoente de uma classe e de uma época, etc.,
etc.
- Vamos fretar um navio –
disse este último, do lado de lá.
O da central apurou o ouvido.
- Vamos fretar o quê?
- Um navio. Para carregar
algodão em caroço.
- Em quê?
- Em caroço.
- Ah!
- Tome nota do nome do
navio, por favor.
- Estou à espera.
- Nilo – soletrou o colega
da delegação do Norte. E repetiu: - Ni-lo.
- Não percebo – protestou o
chefe da central. – Diga isso por letras.
O outro encheu-se de ar.
- Nilo – articulou de um
jato. E perante o silêncio do companheiro-chefe.
- Agora por letras.
- O.K. – concordou o da
central.
- Nilo. Ene, de
Nabucodonosor.
- Nabuquê?
- Nabucodonosor. Um dos
primeiros reis da Caldeia.
- Caldeira?
- Caldeia – repetiu o chefe
da delegação do Norte. CE, de Ceratômetro. A, de arteriotomia. Ele, de
Leibnitz. Dê, de Demóstenes. E, de epibástico. I, de inconstitucional. A, de
absterso.
- Abesquê?
- Absterso.
- Não percebo. Letra a
letra, por favor.
- O.K.! A, de anisanto. Bê,
de bulbífero. Esse, de seticórneo. Tê, de tapiriba. E, de eritróstomo. Erre. De
rizospermo. Esse, de sudoríparo. O, de oleogênese.
- Assim não nos entendemos
– berrou o chefe da central, o papel na sua frente cheio de hieróglifos. – Isto
não é nome de barco nenhum, com os diabos!
- Nilo! – gritou o chefe da
delegação do Norte. – Vou principiar de novo. Tome nota.
- Estou farto de tomar
notas. Recomece, ande lá.
- Atenção.
- Mantenho-me atento. Diga.
- Nilo. Ni-lo. Ene, de
nopálea. I, de ipseidade. Ele, de leucócito.
- Ele de quê?
- De leucócito.
- Por letras, por letras.
- Ele, de lofobrânquio. E,
de encanzinamento. O, de operculífero. Ce, de crepusculário, I, de integérrimo.
Tê, de tetaniforme. O, de orelha-de-mula. Entendido?
- Vamos ver – duvidou o
chefe da central -,
Que disse você no fim?
- Orelha-de-mula.
- De quê?
- Mula – esganiçou-se o
chefe da delegação do Norte – Eme, de mirilâmetro. U, de uretroscópio, uropígio
ou ubaia-muxana. Ele, de loligídeo. A, de apendicalgia. Percebeu agora? -
perguntou por fim.
- Sim. E o nome do barco? –
inquiriu por sua vez o chefe da central.
- Nilo. Ni-lo.
- Diga por letras.
- Ene, de nucífrago...
Consta que o navio não foi fretado,
apodrecendo no cais de embarque, repleto de algas e outras palavras lamacentas.
Ele, de lodo. A, de adubo. Eme, de...
*****
Santos Fernando, no
Pasquim n°
113 – agosto/setembro de 1971
Santos Fernando, escritor
português nascido em 1925, já era conhecido no Brasil através do jornal
satírico "O Pasquim", antes que fosse lançado, em 1970, um de seus
maiores sucessos: "A sopa dos ricos". Autodidata em literatura,
cursou em Lisboa a Escola Comercial, onde encontrou tipos humanos que logo
iriam prestar-se à sua caricatura ferina. Pois, como escritor, Santos Fernando
caracteriza-se pela exploração do "nonsense", do absurdo cômico da
vida. Seus personagens têm sempre um comportamento crítico, exagerado. Assim,
embora tido por humorista, Santos Fernando considera-se antes um escritor
sério, com uma visão crítica alcançada através do humor e da sutileza. Aos
vinte e dois anos, já tinha muitos artigos publicados nos jornais lisboetas.
Mas sua carreira de romancista começou mesmo em 1957, com a publicação de
"A, ante, após, até". Seguiram-se "Seis gramas de paraíso"
(1959), "A bolsa do canguru" (1961), "Areia nos olhos"
(1962) e "Os cotovelos de Vênus" (1963), todos esgotados. Um de seus
livros mais importantes surgiu em 1964: "Tempo de roubar'', onde dois
ladrões filósofos roubam a casa do chefe de polícia, criando depois um verdadeiro
caos no país, ao divulgar uma ordem de soltura de todos os presos. Em
"Consolação n.° 3" (1968) e "A sopa dos ricos" (1970) fica
mais bem caracterizada sua veia para o humor negro. No primeiro, situações
embaraçosas para um grupo de herdeiros são criadas por um boneco eletrônico que
faz revelações indiscretas. No segundo, Santos Fernando ironiza o problema da
fome e da miséria, aqui transformado em atração turística. Autor ainda de
"Absurdíssimo" (1972) e "A árvore dos sexos" (1973), Santos
Fernando fez também o argumento de um filme português ("Pão, amor e
totobola"), peças de teatro musicado e programas de rádio. Dirigiu durante
um ano "Família e Alegria", folhetim de crônicas de vida portuguesa.
Segundo informações de amigos leitores de Portugal, o autor faleceu em 1975.
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