Álvaro Moreyra
Arroio Dilúvio - 1896
Eu me lembro de você, Riacho. Não
porque fosse histórico, ou porque fosse artístico, eu o amei desde pequeno
(mais pequeno...), quando ia à rua da Margem, e não sabia o que era história e
o que era arte. Quero-lhe bem há cinquenta anos, pela sua humildade, pela sua
doçura, pela sua poesia. Você não é um pedaço de água a nadar vagarosamente
entre duas beiras de terra da minha terra. Você, com aquela mesma ponte,
aqueles salgueiros iguais e o céu caído em cima, mudando sempre, sempre outro,
sempre diverso, você é uma criatura que envelheceu como se envelhece entre nós,
os resumidos assim em forma de gente. Riacho, meu parente, meu camarada, meu
mestre. Lembro-me de você, na última vez em que o vi. Não sei música. Se
soubesse, contaria como foi. Toda a cidade estava ali, dentro da solidão. O sol
dormiu em você. Em
você acordaram as estrelas... Riacho, pela sua água passaram todos os
crepúsculos de Porto Alegre, e alguns foram ao fundo...
Praça da Caridade
1908. Todas as noites, uns rapazes se
juntavam por fim na Praça da Caridade, em frente da Santa Casa, e ali se
despediam até de madrugada, conversando, declamando, espalhando no ar
adormecido irreverências e fanatismo. Todas as noites e todas as estações.
Naquele tempo, as estações marcavam principalmente os sentimentos literários,
apesar do frio de julho e do calor de janeiro. Sete rapazes. Cada um com o seu
jeito. Nenhum influía em
nenhum. Clara della Guardia tinha passado por nós, com as mãos
bonitas, a voz dolente, e com “A Filha de Iório”, “A Gioconda”, “a Nave”. Do
teatro São Pedro saíamos transidos. Fora a grande revelação. Desde a noite que
ela nos dera, vinda de tantas cenas do mundo, ficamos inquietos e mais
artificiais, mas tão sinceros, que a vida não chegava e inventamos vidas
diferentes, vidas soltas no espaço sem fronteiras. A legenda, gravada na placa
colocada no saguão da antiga casa de espetáculos, e oferecida por um discurso
de Felipe (D´Oliveira), orientava a nossa exaltação: “Cosa bella mortale passa, e
non d´arte”. A província é a sensibilidade. Da província é que vêm as
ilusões, os encantos dos erros bons, os ingênuos destinos que nunca se
cumprem... Os sete rapazes se dispersaram*. Depois, a loucura destruiu Antonius.
Depois, a morte carregou o Eduardo. Depois o Felipe não veio mais da Europa...
* Os sete rapazes, a que se refere
Álvaro Moreyra, são, além dele mesmo: Homero Prates, Felipe D´Oliveira,
Francisco Barreto, Carlos Azevedo, Antônio Barreto (Antonius) e Eduardo
Guimarães.
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