Cyro Martins
-
Stará morto?
- Bem
mortinho! Não stá vendo? Até falta um caco da cabeça.
Os dois guerreiros desviaram aquele,
e rumaram para outro lado, banhadal a dentro, arqueados à carga de despojos, e
ainda farejando inimigos. Sumiram-se, o semblante pesado de ameaça e espreita,
encobertos pelas moitas altas de
santa-fé. As botas estalando empapadas de água escorregadia das poças
minúsculas. As armas de guerra, pendentes das mãos rudes, sulcando o chão mole.
E o chapéu derrubado para a frente, tapando o sol, ensombrava o perfil
primitivo daqueles homens.
Quando despontaram à beira do
banhado, as assonâncias da batalha reboavam já quase apagadas, espraiadas na
rasura sem eco dos longes.
E o Jarau, azul e longínquo, atorava
ao meio o sol violento de dezembro, encravado no escarlate do poente heroico.
Noite alta, João Paz acordou.
Envolvendo-o numa tonteira funda,
caía-lhe do céu em cheio na cara estúpida, hipnótica, a enorme brancura lunar,
amplificada à fraqueza dos seus olhos mortiços. As moitas de capim,
desalinhadas, afiladas e altas, davam-lhe impressões grandiosas de floresta,
esmagando-o.
No topete dos torrões e à flor de
espumaradas brancas, bem visíveis à claridade da cheia, avultavam sapos em
multidão.
Pareciam-lhe de tamanhos fabulosos as
imóveis, repugnantes, agigantadas rãs. Uma coaxou. Depois outra. E o vozerio a
princípio desarmônico e acanhado, subiu preguiçoso, ondulou no ar morno, tomou
ritmo, e abriu-se agudo e alucinante na pasmaceira da noite parada.
Chumbado contra o chão, hirto, não se
movia, não pensava.
Dilatava os olhos mareados e doídos,
A custo aflorou à consciência. Esquecido de tudo, não podia supor como fora
parar ali.
Num gesto custoso foi encolhendo
devagar os braços, que se mantinham abertos, horizontais, em cruz com o corpo.
Ouriçou-se de surpresa e horror, ao apalpar as carnes nuas das coxas rijas e
endurecidas de barro.
Procurou erguer-se um esforço, para
se olhar, para se ver. E caiu, escasso de força.
Não enxergava o corpo, porque o
torrão que lhe sustinha o pescoço era estreito demais, deixando-lhe pendente a
cabeça.
Apalpava-se, cauteloso e assombrado.
Sentiu o peito e os braços ásperos de barro. Levou as mãos à nuca. A melena
comprida estava dura e suja de sangue. Aventurou-se mais as mãos cansadas. E no
alto da cabeça, os dedos inchados apertaram a ferida mortal.
Outra vez derrubou os braços em cruz
com o corpo.
*****
Do livro “Campo
Fora”, livro de contos regionais de Cyro Martins,
escrito em 1934,
marcando a sua estreia na literatura brasileira.
Observação: A cena
descrita nesse conto “Fim de Batalha”, possivelmente seria o fim
de uma das tantas lutas acontecidas na campanha gaúcha. A luta, ficcionalmente
falando, poderia ter acontecida na Revolução de 1893, 1923 ou 1925.
Nenhum comentário:
Postar um comentário