quinta-feira, 24 de abril de 2014

Fim de Batalha

Cyro Martins




- Stará morto?

- Bem mortinho! Não stá vendo? Até falta um caco da cabeça.

Os dois guerreiros desviaram aquele, e rumaram para outro lado, banhadal a dentro, arqueados à carga de despojos, e ainda farejando inimigos. Sumiram-se, o semblante pesado de ameaça e espreita, encobertos pelas moitas  altas de santa-fé. As botas estalando empapadas de água escorregadia das poças minúsculas. As armas de guerra, pendentes das mãos rudes, sulcando o chão mole. E o chapéu derrubado para a frente, tapando o sol, ensombrava o perfil primitivo daqueles homens.

Quando despontaram à beira do banhado, as assonâncias da batalha reboavam já quase apagadas, espraiadas na rasura sem eco dos longes.

E o Jarau, azul e longínquo, atorava ao meio o sol violento de dezembro, encravado no escarlate do poente heroico.

Noite alta, João Paz acordou.

Envolvendo-o numa tonteira funda, caía-lhe do céu em cheio na cara estúpida, hipnótica, a enorme brancura lunar, amplificada à fraqueza dos seus olhos mortiços. As moitas de capim, desalinhadas, afiladas e altas, davam-lhe impressões grandiosas de floresta, esmagando-o.

No topete dos torrões e à flor de espumaradas brancas, bem visíveis à claridade da cheia, avultavam sapos em multidão.

Pareciam-lhe de tamanhos fabulosos as imóveis, repugnantes, agigantadas rãs. Uma coaxou. Depois outra. E o vozerio a princípio desarmônico e acanhado, subiu preguiçoso, ondulou no ar morno, tomou ritmo, e abriu-se agudo e alucinante na pasmaceira da noite parada.

Chumbado contra o chão, hirto, não se movia, não pensava.

Dilatava os olhos mareados e doídos, A custo aflorou à consciência. Esquecido de tudo, não podia supor como fora parar ali.

Num gesto custoso foi encolhendo devagar os braços, que se mantinham abertos, horizontais, em cruz com o corpo. Ouriçou-se de surpresa e horror, ao apalpar as carnes nuas das coxas rijas e endurecidas de barro.

Procurou erguer-se um esforço, para se olhar, para se ver. E caiu, escasso de força.

Não enxergava o corpo, porque o torrão que lhe sustinha o pescoço era estreito demais, deixando-lhe pendente a cabeça.

Apalpava-se, cauteloso e assombrado. Sentiu o peito e os braços ásperos de barro. Levou as mãos à nuca. A melena comprida estava dura e suja de sangue. Aventurou-se mais as mãos cansadas. E no alto da cabeça, os dedos inchados apertaram a ferida mortal.

Outra vez derrubou os braços em cruz com o corpo.

*****

Do livro “Campo Fora”, livro de contos regionais de Cyro Martins,
escrito em 1934, marcando a sua estreia na literatura brasileira.




Observação: A cena descrita nesse conto “Fim de Batalha”, possivelmente seria o fim de uma das tantas lutas acontecidas na campanha gaúcha. A luta, ficcionalmente falando, poderia ter acontecida na Revolução de 1893, 1923 ou 1925.



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