sábado, 14 de dezembro de 2019

A Eloquência do Amor

        (De Campos Monteiro)
    

Ela morava em frente à velha Catedral.
Num nicho de granito encimando o portal,
infundia terror com seu olhar severo
a estátua de São Bruno, o filósofo austero
que em sua vida fora um látego inflamado
contra a fera bestial do Amor e do Pecado.
A ignara multidão que embaixo transitava
tinha-lhe medo, e nunca os olhos levantava
pra o vulto colossal do santo pensador,
incapaz de perdão para os crimes de amor.
Ereto, levantado a grandiosa estatura,
sustentando na mão a Sagrada Escritura
São Bruno lia sempre; e o seu olhar profundo
parecia fugir ao bulício do mundo,
imerso na leitura, essa paixão antiga.

Mas quando, de manhã, a pobre rapariga,
órfã de pai e mãe, vivendo solitária,
abria a gelosia*, então − extraordinária
coincidência! − a austera imagem parecia
que a olhava com amor, meigamente, e sorria,
como sorri um pai à filha mais querida.
É que, morando ao pé, sabia a sua vida,
clara e serena como um lago de cristal,
toda entregue ao trabalho, indiferente ao Mal,
sem ter, para a guiar na viagem da existência,
outro farol que a luz da sua consciência.

Dia chegou, porém, em que o seu coração
vibrou intensamente ao sopro da paixão.
Amou... E um dia o Santo, atônito de pasmo,
viu-os pelo jardim, num doido entusiasmo
enlaçados passeando, entre os lírios em flor,
esquecidos da vida e sedentos de amor.
E quando, na manhã seguinte, ela assomou
à janela, cantando, e os olhos lhe fitou,
o Santo conservou-se inerte como um velho
sem despregar o olhar das folhas do Evangelho...
Tornara-se mais dura a linha do seu rosto,
onde se projetava a sombra dum desgosto,
e pela primeira vez, franzindo o sobrecenho,
ele foi para ela assim como um estranho...

Ela corou, tremeu, de espanto e de surpresa.
E com a doce voz ungida de tristeza,
murmurou: − Sim, talvez tenhais, Senhor, razão...
Mas vede bem que sou digna de compaixão!
Sozinha, sem ninguém que me ampare e proteja,
fui qual a flor azul que no polo viceja,
buscando a luz do sol, ansiando por calor,
sob um céu inclemente e com gelo ao redor.
Nova e formosa, amei. Se a Deus traí, então
pra que me fez mulher e me deu coração?

O amor... vós o ignorais. Vivestes isolado
numa célula estreita, assim com um forçado.
Não sabeis o que seja esse doce delírio
feito de abnegação e ventura e martírio.
Não há no mundo, crede, aurora mais divina,
aroma mais suave ou luz mais cristalina.
De que serve nascer, viver, tombar no nada,
sem sentir o prazer de amar e ser amada?

É como atravessar um vergel* sedutor
sem aspirar sequer o aroma de uma flor,
ou como apetecer a imensidão do ar,
ter umas asas de ouro... e não saber voar.
Que vale ser formosa, e que vale enfim
uns olhos de cristal e uns lábios de carmim,
se nunca há de brilhar nos olhos um desejo,
e nunca há de florir na boca a flor de um beijo?
As mãos que Deus nos deu, macias como as rosas,
nasceram pra enlaçar outras mãos vigorosas,
para acariciar um rosto que descora,
para enxugar o pranto a quem padece e chora...
Ah! Não! Vós não sabeis a olímpica ventura
do Amor, essa arroubante* e celeste amargura!
Quando passa por nós o ente que adoramos
o nosso peito é como um Domingo-de-Ramos.
Se fala, a sua voz nos abre o paraíso;
eleva-nos ao céu no eflúvio de um sorriso...
E se acaso nos beija, em nosso seio lança
tudo quanto de doce o entendimento alcança,
e a nossa alma fica alegre e virginal
como uma criancinha em noite de Natal!
Amar não é pecado, oh! não! Se amar é crime,
dizei-me em que consiste a virtude sublime!
Amar é caminhar de olhos fitos nos céus,
mais distante do mundo, e mais perto de Deus!
E a existência seria − ai de mim! − um horror,
se o Ideal morresse e nos faltasse o Amor!

O Santo ouviu, sereno, o longo arrazoado,
impenetrável, hirto e como que assombrado.
Por fim, num gesto lento e cheio de perdão,
cingiu-a num olhar de amor e compaixão,
e uma lágrima astral −  gota de orvalho pura
rolou-lhe pela face, e tombou na Escritura...

(Do Almanach Bertand, 1924)

*Gelosia: Grade de ripas, de malha pouco aberta, que guarnece algumas janelas e portas a fim de impedir que a luz e o calor excessivos penetrem no interior da casa, e que este seja devassado da rua; rótula; designação de certas persianas que se podem enrolar na parte superior da janela.

*Vergel: Terreno plantado de árvores frutíferas; pomar.

*Arroubante: arrebatada, extasiada.


São Bruno: santo que se tornou o fundador da Ordem dos Cartuxos, considerada a mais rígida de todas as Ordens da Igreja, e que atravessou a história sem reformas.

Filho de família nobre de Colônia (Alemanha), nasceu em 1032. Quando alcançou idade foi chamado pelo Senhor ao sacerdócio, e se deixou seduzir. Amigo e admirado pelo Arcebispo de Reims, Bruno, inteligente e piedoso, começou a dar aulas na escola da Catedral desse local, até que já, cinquentenário e cônego, amadureceu na inspiração de servir a uma Ordem religiosa.

Fundou no sul da Itália o Mosteiro de Santa Maria da Torre, onde veio a falecer no dia 6 de outubro de 1101.

As últimas palavras foram: “Eu creio nos Santos Sacramentos da Igreja Católica, em particular, creio que o pão e o vinho consagrados, na Santa Missa, são o Corpo e Sangue, verdadeiros, de Jesus Cristo”.


Abílio Adriano de Campos Monteiro (Torre de Moncorvo, 7 de março de 1876 − São Mamede de Infesta, 4 de dezembro de 1933) foi um escritor, jornalista, médico e político português.

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