Lembranças do Dr. Jango
Ibere Teixeira
Parece que foi ontem, mas já se
passaram 43 anos. João Belchior Marques Goulart* foi o único Presidente
brasileiro a morrer no exílio, vítima da intolerância dos militares. Com um
pouco de realidade e ficção, escrevi um livro (Jango-Vítima da ditadura)
conjeturando que foi o general Sylvio Frota quem matou Jango. Ele era Ministro
do Exército do regime e, quando o Presidente decidiu voltar com vida para casa,
expediu ordens para que fosse “imediatamente preso” ao retornar. Isso foi em 09
de setembro de 1976, e aquele coração amargurado de tristeza e solidão não
resistiu: menos de três meses depois, em 6 de dezembro, teve um infarto e
morreu.
Eu era Caixa-Executivo do Banco
do Brasil quando, num dia gelado de inverno, o Empresário Francisco Carlos
Banderó foi sacar dinheiro e me disse: “Estamos indo lá, visitar o Chefe”. Ele
iria com o seo Júlio Madeira e me levaram junto. O doutor Jango fazia
constantes deslocamentos pelas Fazendas, mas, quando chegamos a Maldonado, ele
estava só, envolto na quietude dos campos, chimarreando ao pé da lareira. O
friozito minuano fazia cusco renguear e ele mandou preparar arroz de carreteiro
e um ensopado de espinhaço de ovelha com mandioca, enquanto conversava, fumava
e dispensava o mate para sorver um gole de uísque Johnnie Walker, sem gelo.
Jango era um típico gaúcho
campechano da fronteira, com seu temperamento afável e leal, telúrico,
resignado ante a violência da ditadura civil e militar que fizera dele um
apátrida. O seu “crime” fora lutar contra as injustiças sociais: era um homem
rico preocupado com a pobreza do seu povo. Nos dizia que “o exílio é uma
invenção do demônio” e que a sua queda, como o suicídio de Getúlio, tinha sido
muito mais uma derrota do povo do que sua própria derrota pessoal.
Após uma boa sesteada, Jango e o
capataz se acotovelaram no listão da mangueira para examinar uma novilhada
Hereford que pretendia vender. Ao sair das casas, de camisa arremangada,
calçando bombacha e alpercatas, se deteve para acariciar o pescoço de uma égua
tordilha, pendurada pelo bico na sombra de um paraíso, adelgaçando à espera dos
arreios. No dia seguinte, quando partimos, alguém olhou o relógio, num gesto
quase mecânico: eram 7 horas da manhã.
Ao lado da peonada, Jango
acompanhou a despedida enforquilhado no serigote do seu pingo malacara, com o
silêncio de um barco distante. O vento soprava despacito sobre a fralda verde
das flechilhas, enquanto um lote de gado pampa pastava na invernada, pisoteando
o chapadão macio das sesmarias. Comandante político de miles de entreveros, o
Dr. Jango assistia, de riba da coxilha, ao seu irremediável toque de silêncio.
Seis meses depois, como um “prisioneiro na ilha de si mesmo”, ele morreu.
*João Belchior Marques Goulart (São Borja,
RS, 1º
de março de 1919
− Mercedes, Uruguai, 6 de
dezembro de 1976),
conhecido popularmente como “Jango”, foi um advogado e político brasileiro,
24° presidente do país, de 1961 a 1964.
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