terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O prisioneiro na ilha de si mesmo

Lembranças do Dr. Jango

Ibere Teixeira


Parece que foi ontem, mas já se passaram 43 anos. João Belchior Marques Goulart* foi o único Presidente brasileiro a morrer no exílio, vítima da intolerância dos militares. Com um pouco de realidade e ficção, escrevi um livro (Jango-Vítima da ditadura) conjeturando que foi o general Sylvio Frota quem matou Jango. Ele era Ministro do Exército do regime e, quando o Presidente decidiu voltar com vida para casa, expediu ordens para que fosse “imediatamente preso” ao retornar. Isso foi em 09 de setembro de 1976, e aquele coração amargurado de tristeza e solidão não resistiu: menos de três meses depois, em 6 de dezembro, teve um infarto e morreu.

Eu era Caixa-Executivo do Banco do Brasil quando, num dia gelado de inverno, o Empresário Francisco Carlos Banderó foi sacar dinheiro e me disse: “Estamos indo lá, visitar o Chefe”. Ele iria com o seo Júlio Madeira e me levaram junto. O doutor Jango fazia constantes deslocamentos pelas Fazendas, mas, quando chegamos a Maldonado, ele estava só, envolto na quietude dos campos, chimarreando ao pé da lareira. O friozito minuano fazia cusco renguear e ele mandou preparar arroz de carreteiro e um ensopado de espinhaço de ovelha com mandioca, enquanto conversava, fumava e dispensava o mate para sorver um gole de uísque Johnnie Walker, sem gelo.

Jango era um típico gaúcho campechano da fronteira, com seu temperamento afável e leal, telúrico, resignado ante a violência da ditadura civil e militar que fizera dele um apátrida. O seu “crime” fora lutar contra as injustiças sociais: era um homem rico preocupado com a pobreza do seu povo. Nos dizia que “o exílio é uma invenção do demônio” e que a sua queda, como o suicídio de Getúlio, tinha sido muito mais uma derrota do povo do que sua própria derrota pessoal.

Após uma boa sesteada, Jango e o capataz se acotovelaram no listão da mangueira para examinar uma novilhada Hereford que pretendia vender. Ao sair das casas, de camisa arremangada, calçando bombacha e alpercatas, se deteve para acariciar o pescoço de uma égua tordilha, pendurada pelo bico na sombra de um paraíso, adelgaçando à espera dos arreios. No dia seguinte, quando partimos, alguém olhou o relógio, num gesto quase mecânico: eram 7 horas da manhã.

Ao lado da peonada, Jango acompanhou a despedida enforquilhado no serigote do seu pingo malacara, com o silêncio de um barco distante. O vento soprava despacito sobre a fralda verde das flechilhas, enquanto um lote de gado pampa pastava na invernada, pisoteando o chapadão macio das sesmarias. Comandante político de miles de entreveros, o Dr. Jango assistia, de riba da coxilha, ao seu irremediável toque de silêncio. Seis meses depois, como um “prisioneiro na ilha de si mesmo”, ele morreu.


*João Belchior Marques Goulart (São Borja, RS, 1º de março de 1919 − Mercedes, Uruguai, 6 de dezembro de 1976), conhecido popularmente como “Jango”, foi um advogado e político brasileiro, 24° presidente do país, de 1961 a 1964.

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