segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

A lição do burro velho



Era uma vez um velho burro. Fora madraço* e manhoso. Não conquistara amigos porque os não merecia. Tinham-no lançado à margem no fim da vida. Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia, achava-se defronte de um valado*, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, imóvel, olhando para um cardo seco com os seus grandes olhos redondos e encovados em órbitas esqueléticas, pensando nas vicissitudes da vida e procurando arrancar do seu cérebro, para se consolar, algumas ideias filosóficas.

Passou por ele e deteve-se a contemplá-lo um jovem asno, no viço das ilusões, cheio de amor e de zurros*, de alegria e de coices. A vetusta ossada angulosa do ancião parecia furar-lhe a pele ressequida e áspera. Um espesso enxame de moscas cobria-lhe as mataduras do lombo e dava-lhe o aspecto de ter um albardão* feito de zumbidos e de asas sobre um fundo de miçangas pretas e palpitantes, coisa rabujosa à vista.

− Sacode esse mosqueiro, disse-lhe o burro novo. Dar-se-á o caso de que, à semelhança do homem, deixasses também tu atrofiar o precioso músculo que aí tens na face para por meio dele abanares a orelha e moveres a pele?... Sacode-te, bestiaga*!

Ao que o lazarento*, pausado, retorquiu:

− Não sabes o que zurras, jovem temerário! O destino de quem tem mazelas é que o mosqueiro o cubra. As moscas que tu vês, e de que o meu cerro é a estalagem com mesa redonda, são moscas fartas, têm a mansidão abundante dos estômagos cheios. Se eu as sacudisse, viriam outras, − as famintas, de ferrões gulosos, que zunem como flechas, pousam como cáusticos, mordem como furúnculos. As que tu vês prestam-me um serviço impagável: − livram-me das que podem vir; são o meu xairel* benigno e suave, o meu arnês*, a minha couraça. Quando te chegar a idade de seres pasto de moscas (e breve te soará essa hora porque a mocidade é, como a erva, uma efêmera transição entre o alfobre* da meninice e a palha da idade madura); quando te chegar o teu dia, lembra-te, asninho imprudente, deste conselho amigo de um burro velho, que não aprende línguas, mas que tem a experiência que vale tanto como o ouro: Nunca sacudas mosca desde que criares mazela! Teme-te dos papos vazios das revoadas novas. Papos cheios não só não mordem, mas até empacam! Compreendeste, burrinho, a filosofia da minha inércia?


As Farpas: Crônica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes
José Duarte Ramalho Ortigão.

Glossário:

*Madraço: que ou aquele que não se empenha em suas atividades, que é dado ao ócio; mandrião, preguiçoso, vadio.

*Valado: ala rasa, guarnecida de tapume ou sebe, que cerca uma propriedade rural.

*Zurro: som produzido por equídeo, burro, jumento; relincho.

* Albardão: sela própria para cavalaria, com feitio de albarda, mas forrada de carneira (pele de carneiro).

*Bestiaga: besta de pouco préstimo.

* Lazarento: insuportável; diz-se de quem que não se pode suportar ou do que é repulsivo:

*Xairel: cobertura de cavalgadura, por baixo do selim.

*Arnês: armadura completa de um guerreiro, que o cobria da cabeça aos pés.

*Alfobre: canteiro entre dois regos por onde corre água.

Nenhum comentário:

Postar um comentário