domingo, 15 de dezembro de 2019

Eloquência Singular

Crônica de Fernando Sabino


Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

− Senhor Presidente: eu não sou daqueles que…

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

− Não sou daqueles que…

Não sou daqueles que recusam… No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem − que recusa? − ele que tão facilmente caia nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que… Resolveu ganhar tempo:

− …embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo nesta Casa, não sou…

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

− …daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa…

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

− Não sou daqueles que…

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:

− Não sou daqueles que, dizia eu − e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada…

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:

− Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão “daqueles que” era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticoide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

− …não sou daqueles que, conforme afirmava…

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

− Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que…

− Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

− Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

− Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem − e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.

− Eu? Mas eu não disse nada…

− Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.

− Que é que você acha? − cochichou um.

− Acho que vai para o singular.

− Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador seguia na sua luta:

− Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente…

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta…

− Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

− Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública…

E entrava por novos desvios:

− Muito embora… sabendo perfeitamente… os imperativos de minha consciência cívica… senhor Presidente… e o declaro peremptoriamente… não sou daqueles que…

O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:

− Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:

− Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

*****

«Não sou daqueles que recusa», ou «não sou daqueles que recusam»?

Era este o dilema do orador.

«Não sou daqueles que recusa», ou «não sou daqueles que recusam»? Eça de Queirós é «um dos escritores que contribuíram para o prestígio da literatura portuguesa», ou Eça de Queirós é «um dos que contribuiu»? Em artigo publicado no Diário do Alentejo de 6 de Março de 2009, Maria Regina Rocha socorre-se de um saboroso trecho literário do escritor brasileiro Fernando Sabino para voltar a um tema recorrentemente questionado.

Eça de Queirós é «um dos escritores que contribuíram para o prestígio da literatura portuguesa», ou «um dos que contribuiu»? O verbo da oração relativa vai para o singular, ou para o plural?

Nesta situação, o verbo recusar vai para o plural, concordando com o sujeito que, cujo antecedente é o demonstrativo aqueles, ou seja, um termo no plural. Pretende o orador dizer que não pertence («não sou daqueles») ao grupo daqueles que recusam: há aqueles que recusam, mas ele não pertence a esse grupo: o verbo que diz respeito ao orador está no singular (não sou), o que diz respeito aos outros está no plural (recusam).

E, quanto a Eça de Queirós, pertence ao número de escritores (é um deles) que mais contribuíram para o prestígio da literatura portuguesa: é um dos escritores (verbo ser no singular), mas não foi o único, houve outros que também contribuíram (plural).

Fonte: 

In Diário do Alentejo do dia 6 de Março de 2009,
na coluna: A Vez… ao Português.



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