quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Uma lenda da Lapa

A Igreja sem uma das torres, tiro de canhão?


Imagem de Justiniano Oliveira

(...) Wilson Batista gostava muito da Lapa, bairro inclusive onde viveu alguns anos, sendo que durante algum tempo residiu na rua Joaquim Silva. Mas a Lapa inspirou a Wilson um lindo samba de parceria com Marino Pinto, Largo da Lapa.

Foi na Lapa que eu nasci,
foi na Lapa que eu aprendi a ler.
Foi na Lapa que eu cresci,
e na Lapa, eu quero morrer.

A Lapa também tem a sua igreja,
pra que toda gente veja,
onde eu fui batizado.
A Lapa, onde já não há conflito,
fica no 5º Distrito,
onde eu fui criado.
Um samba, um sorriso de mulher,
bate-papo de café,
eis aí a Lapa.
Um samba, um sorriso de mulher,
bate-papo de café,
eis aí a Lapa.

Mas além dessa, Wilson compôs uma outra, mais interessante e que provocou muitos debates, pela incoerência de sua letra que, inclusive, deturpava a história: História da Lapa.

Lapa dos capoeiras,
Miguelzinho, Camisa Preta,
Meia-Noite e Edgar... *

Lapa, minha Lapa boêmia,
a lua só vai pra casa
depois do sol raiar.

Falta uma torre na igreja,
vou lhe contar, meu irmão,
foi na briga de Floriano,**
foi um tiro de canhão.
E nesse dia a Lapa vadia
teve sua glória,
deixou o nome na história.

Este samba deu bastante comentários, porque um repórter do jornal O Globo, inconformado com a letra da música, quis saber do famoso escritor e historiador Luiz Edmundo se era verdade que a torre da Igreja da lapa fora destruída por um tiro de canhão, no tempo de Floriano, ou seja, por ocasião da Revolta da Esquadra.***

Luiz Edmundo disse que a música estava errada, pois jamais tiro algum de canhão atingiu a torre da Igreja da Lapa. E ele podia afirmar isso com convicção, pois residia è época na rua da Lapa, à altura da rua Taylor, quando seu pai era encarregado de uma escola bem em frente àquela rua. Foi, portanto, uma testemunha dos acontecimentos e, em suas memórias, conta detalhadamente como observava dos fundos do quintal de sua casa a manobra dos navios da esquadra sob comando de Custódio de Melo e Saldanha da Gama. Era um espectador privilegiado, pois o mar vinha até a rua Augusto Severo. E jamais soube de tiro de canhão que arrasasse a torre da Igreja da Lapa.

(...) Certa vez, na Lapa, na calçada em frente à entrada do café Indígena, Jorge Faraj estava com alguns compositores, inclusive Wilson (Batista), perguntando o que havia de diferente na Igreja da Lapa. Nenhum deles, por mais que olhasse, acertou, até que Faraj com seu sorriso caricato disse que faltava uma torre na igreja. Todos riram.

(Trecho do livro “Wilson Batista e sua época”,
de Bruno Ferreira Gomes)

* Malandros da Lapa. Mas outros lugares como o Mangue, a Saúde, a Praça Onze e o Cais do Porto também abrigaram Meia-Noite, Beto Batuqueiro, Edgar, Sete-Coroas, Miguelzinho e muitos outros...

A partir de 1937, a vida do malandro vai ficando mais difícil. O Estado Novo de Getúlio Vargas, com sua ideologia de culto ao trabalho e à produção, inicia uma severa repressão aos “ociosos”.

Meia-Noite morreu assassinado por um desafeto em 1938. Miguelzinho morreu aos dezoito anos de morte natural. Joãozinho da Lapa foi assassinado por um companheiro de malandragem por volta de 1939. Edgar morreu aos 26 anos de idade − só um sobrou para contar a história...

João Francisco dos Santos − o Madame Satã, 1,75 m, 108 kg. sem um grama de gordura, forte e parrudo, cabelos negros longos e lisos, foi conhecido inicialmente como “Caranguejo da Praia das Virtudes”, onde nadava diariamente, e mais tarde como “Mulata do Balacochê”, o primeiro artista travestido Brasil.

**Floriano Peixoto (1839-1895) foi um militar e político brasileiro, primeiro vice-presidente e segundo presidente do Brasil, cujo governo abrange a maior parte do período da história brasileira conhecido como República da Espada.

***A Revolta da Armada foi um movimento de rebelião promovido por unidades da Marinha brasileira contra os dois primeiros governos republicanos, que estavam tomando feições de uma ditadura militar.


Na foto acima foto de 1925 vemos a Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Lapa do Desterro, tendo ainda ao fundo o convento, antigo seminário, que seria destruído por um incêndio no final da década de 50. O projeto é do século XVIII, do engenheiro José Fernandes Alpoim, e incluía a capela e um seminário. Obras de reforma aconteceram no século XIX e início do século XX.

É curioso que a igreja tenha uma torre sineira à esquerda e à direita apenas a coluna incompleta. Parece que seria completada apenas se fosse elevada à categoria de igreja-matriz. Outra hipótese, menos provável, é que o motivo disso vinha do Governo Português: na época cobraria altos impostos quando a construção estivesse concluída e aí a maneira encontrada para não pagar o imposto era deixar a obra inacabada.

(Do blog Saudades do Rio)


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