sábado, 27 de fevereiro de 2021

Banho de chuva

 Paulo Mendes

Dona Aninha segura a mão gelada de Cleto e um arrepio percorre-lhe o corpo já velho e cansado de antiga mulher interiorana que acabou vindo morar na capital, seguindo o marido. Olha para aquele rosto tão amado, os poucos fios de cabelo que lhe restaram e para as mãos grandes, com dedos longos, algumas cicatrizes que ela conhece bem. Sente uma imensa bola na garganta e não consegue falar nada às amigas e aos poucos parentes que vieram para o velório e o enterro. Também, nesses tempos de pandemia todo mundo anda apavorado, com medo. Enquanto arruma a máscara, lembra quando conhecera Anacleto, ainda lá na escola da Vila Rica. Estavam no terceiro ano. Não, não, foi na quarta série, ele era bonito, alto, olhos pretos e vivos, gostava de declamar versos, andava com livros de poetas debaixo do braço. Desde o primeiro dia sentou na classe à sua frente e quando se virou e a encarou firme no fundo dos seus olhos ela se arrepiou, como agora, e nada disse. 

Com o passar do tempo, viviam grudados. No recreio, depois que comiam o lanche, Cleto lia trechos de contos de Simões Lopes Neto, poemas de Aureliano de Figueiredo Pinto, e dizia: “Escuta isso.” Ela ficava quietinha, escutando, enquanto olhava lá na quadra de cimento os outros meninos jogando bola. Ela admirava o amor dele pelos livros, pelas histórias de assombrações e mistérios. Ele era muito bom em matérias de Humanas, enquanto ela tinha facilidade para a área de Exatas, matemática, física etc. Foram crescendo e lá pelam 8° série começaram a namorar de fato, apesar de que sempre se amaram, desde o primeiro dia que se viram. Foi numa excursão de fim do Primeiro Grau, quando conheceram as cidades da Serra Gaúcha. Dormiram abraçados no ônibus. Quando ela acordou, estava sendo beijada por Cleto e, sem medo ou vergonha, retribuiu, porque já estava acostumada com seu cheiro. 

A capela mortuária está movimentada, apesar dos avisos de “Proibido aglomerações”. A pandemia piora dia a dia, uma tristeza. Cleto nem chegou a ser vacinado. Ela tomou vacina, mas ainda sente medo da doença. Dona Aninha pressente que começa a chover lá fora e aqui dentro recorda dos inúmeros banhos de chuva que tomaram juntos quando saíam da escola e iam para casa. Moravam perto. Ela ao lado dos trilhos, numa casinha, branca de madeira, com os pais e mais uma irmã mais velha. Ele, lá perto do CTG, numa chácara da família e um bolicho. As brincadeiras na chuva se seguiam em casa, antes do banho de verdade e a roupa seca. Cleto tinha um irmão mais novo que adorava a lida campeira, mas ele não, gostava mesmo era de ler e recitar versos. Ela se tornou professora e ele radialista e escritor. Casaram, moraram na Vila Rica e depois o marido foi chamado por uma grande emissora da capital. 

Depois do enterro, dona Aninha sai junto com algumas amigas para a rua. Enquanto espera a filha buscar o carro num estacionamento, fica a observar duas crianças que passam rindo e tomando banho de chuva. Dona Aninha pensa que parecem eles há mais de 60 anos lá na Vila Rica, deixando a escola também e indo para casa. As duas crianças, um menino alto e uma guria mais baixa e franzina, estão começando suas vidas. A dela, como a de Cleto, está chegando ao fim. 

(Campereada, Correio do Povo, fevereiro de 2021)

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