terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Cordão da saudade

 Nilson Souza 

Conto da terça-feira de carnaval sem Carnaval.

Depois de perambular por todos os bares da madrugada, ele cambaleava e cantarolava numa calçada desconhecida quando deparou coma fila que dobrava a esquina. Não teve dúvidas: entrou. Brasileiro não pode ver fila. Depois de alguns segundos de hesitação, aproximou-se a boca sem máscara do ouvido do sujeito da frente e soltou a voz: 

− Ó abre alas, que eu quero passar... 

O homem fulminou-o com um olhar indignado e apontou para os próprios cabelos brancos, que escorriam pelos lados do boné, sugerindo que tinha preferência. O folião não perdeu o embalo: 

− Olha a cabeleira do Zezé... 

O idoso chamou o segurança que controlava o distanciamento e apontou com o dedão sobre próprio ombro. Ao ver o agente fardado se aproximando, o penetra tomou-o por um vigilante de carro-forte e caprichou na afinação: 

− Ei, você aí, me dá um dinheiro aí... 

Interpelado a se comportar ou deixar o lugar, soltou a voz mais uma vez: 

− Daqui não saio, daqui ninguém me tira... 

Apareceram dois outros homens fardados para verificar o que estava ocorrendo. O bêbado se entusiasmou: 

− Chegou a turma do funil: todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto... 

Sem saber o que fazer com o inconveniente, que cantava e falava alto, mas que talvez tivesse o direito de estar na fila, os homens chamaram a coordenadora da unidade de saúde. Quando viu a moça vestida de branco e amarelo, o cantor buscou no seu repertório de sambista outra marchinha: 

− Apareceu a Margarida, olê, olê, olá... 

Com vontade de rir, a funcionária esforçou-se para fazer uma cara de zangada, mas o folião não se deu por vencido: 

− Ó, jardineira, por que estás tão triste? 

Percebendo a zoeira, a própria vacinadora deixou o seu posto e aproximou-se, ainda com a seringa na mão. Então o bêbado arregalou os olhos e foi recuando de mansinho, sem deixar de cantarolar: 

− Ai, ai, aiai. Tá chegando a hora. O dia já vem raiando, meu bem. E Eu tenho que ir embora. 

Afastou-se como um Carlitos caminhando para o The End. Na fila da vacina, ficaram os grisalhos, a maioria repetindo silenciosamente uma daquelas marchinhas de uma vida inteira e sonhando com outros Carnavais que virão. 

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(Em Zero Hora, fevereiro de 2021)

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