quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Cantadores nordestinos

  

Em suas andanças pelo Nordeste, recolhendo material folclórico dos mais variados poetas populares, Leonardo Mota (1891-1948) conseguiu juntar um farto material que transformou em livros, numa admirada homenagem à sabedoria humilde e à filosofia toda pessoal dos cantadores. Leonardo Mota, que foi um apaixonado pesquisador dos cantadores que produzem prosa sertaneja, estudou-os em sua intimidade, em seu próprio ambiente, convivendo com eles de igual para igual. 

Tem duas coisa no mundo
Que eu nunca pude entendê;
É pade i pro inferno,
Outra é doutô morrê.
 

Avoa, meu caboré,
Penera, meu gavião,
Palmatora quebra dedo,
Palmatora faz vergão,
Quebra os ossos e quebra a carne
Mas não quebra opinião!...

..............

Preu cantá na sua casa,
Meu patrão, me dê licença!
Se a cantiga não fô boa,
Desculpe, vossa incelença
Que, às vez, as coisa não sai
Do jeito que a gente pensa.

Não tem outro cantadô
Pra me ajudá um tiquim.
O cantá de dois é bom,
O ruim é cantá sozim;
A gente, andando de dois
Encurta mais os camim...
 

Anselmo 

De amor a gente não muda.
De ano em ano, mês em mês!
Amor é que nem bexiga:
Só dá na gente uma vez...

.............

Cantador que dá-se a preço
Não se areia nem faz troça:
Sujeito de bom calibre
Depois de velho remoça;
Quem beija a boca de um filho
A boca de um pai adoça.

Nossa Senhora é mãe nossa,
Jesus Cristo é nosso pai
Na minha boca repente
É tanto que sobra e cai...
Quem beija a boca de um filho
Adoça a boca de um pai.

Mostro a quem vem e a quem vai,
Mostro a todos da jornada:
Mais vale quem Deus ajuda
Do que quem faz madrugada.
Quem beija a boca de um filho
Deixa a de um pai adoçada.

Este mundo é uma charada...
Ai de mim, se Deus não fosse!
Repente em minha cabeça
Ainda não acabou-se:
Quem beija a boca de um filho
Deixa a boca de um pai doce.

Foi o inverno quem trouxe
Ao Ceará a fartura.
Eu, em casa de homem rico,
Gosto de fazer figura...
Quem beija a boca de um filho
Deixa a de um pai com doçura.
 

Jacó Passarinho 

Anda já em quarenta ano
Que eu vivo somente disso...
Achando quem me proteja,
Eu sou bom nesse serviço:
Eu faço a vez de machado
Em tronco de pau mucisso...

Esta minha rabequinha
É meus pés e minhas mão,
Minha foice e meu machado,
É meu mio e meu feijão,
É minha planta de fumo,
Minha safra de algodão...

................ 

Eu andei de déu em déu
E
desci de gaio em gaio...
Jota a Já, queira ou não queira,
Eu não gosto é de trabaio...
Por três coisa eu sou perdido
Muié, cavalo e baraio!
 

Cego Sinfrônio 

Meu benzinho, diga, diga,
Por caridade confesse,
Se você já encontrou
Quem tanto bem lhe quisesse.

Meu bem, que mudança é esta
Neste teu rosto adorado?
Acabou-se aquele agrado
Com que me fazia festa?

Eu juro que nunca quis
Ofender teu peito nobre!
Fala, meu anjo, descobre.
Diga, meu bem, que te fiz?

Todo passarinho canta
Quando vem rompendo a aurora;
Só a pobre mãe da lua
Quando canta — logo chora...
Assim eu faço também,
Quando meu bem vai se embora!
 

Aderaldo 

“São donos cantadores da palavra”. Revista Esso. Rio de Janeiro, fevereiro de 1963)

(Do blog Acorda Cordel)

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